sábado, 31 de dezembro de 2011

A TI ME CONFESSO...



NO CAMINHO

Quando a vida
... Me coloca num beco sem saída
Quando me batem à porta
E resta a confusão, a dúvida
Erguo a cabeça
Vislumbro, percepciono
Em mim fala sempre mais alto
O que em mim vibra
Ilumina
A alma
 E nas rotundas
Em que todas as tabuletas
Se desvanecem
Não preciso de bússola ou guia
Sigo serena o coração
Que me anuncia
Olho em meu redor
Valorizo
Não me perco
Acredito,
Aceito

 Acrescento luz ao meu caminho
Compreendo a sombra
Sou o brilho que em mim vibra.

EM TI

Gonçalo Salvado, in Ardentia


Em ti o chão exausto de meu desejo. A flor aberta
... dos sentidos. A calidez do lume. A água. O vinho.
O sangue a estuar em fúria. O grito do sol
que em transe de labareda fulge e irradia.
A extensão de tantos vales
e colinas. Fragrantes. Infinitas.
Os pomos saborosos, repartidos.
Os gomos. Os sumos ardorosos.
Os bosques impregnados de maresia.
A placidez molhada das ervas.
O luzir loiro das searas pelo vento devastadas.
O estio. O seu zénite. A sua vertigem.

Em ti a inclinação dos ramos. A translucidez do verde.
O derrame da seiva. O estremecer das raízes.
O musgo despontando. O aveludado dos troncos.
Os álamos. Os plátanos. E outras núbeis melodias.
O espreguiçar incandescente dos rios.
O êxtase das aves altas anunciando o fervor
de um beijo. De um afago. De uma carícia.
O hálito das corolas. As sépalas. Os estames.
O brilho e o odor silvestre da resina. A relva sedosa.
A primavera inebriada com sua própria brisa.

Em ti o menear da terra. As eiras. O feno flamante.
O irromper dos brotos. O despertar dos cálices.
A embriaguez do nardo. E da acácia, festiva.
O matiz das cores na várzea repercutido.
O som dos mananciais posto a descoberto.
O manar das fontes em euforia.
Os céus azuis a derramarem hinos.
O trinado agudo da andorinha.
O acenar obstinado dos choupos.
As centelhas rubras do crepúsculo.
O perfume juvenil das vinhas.

Em ti o delírio das ondas. Das espumas.
As fogueiras ateadas. Os aromas fulvos.
O sopro das chamas. O pão aceso. As espigas.
Os campos de lilases que se estendem
numa queimadura de aurora.
As pétalas humedecidas.
O incêndio azul do orvalho.
A alvura da açucena na manhã florida.

Em ti, amada, celebro a memória de todas as coisas vivas.

[IREMOS JUNTOS SOZINHOS PELA AREIA]



SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in NO TEMPO DIVIDIDO

Iremos juntos sozinhos pela areia
Embalados no dia
Colhendo as algas roxas e os corais
Que na praia deixou a maré cheia.

As palavras que disseres e eu disser
Serão somente as palavras que há nas coisas
Virás comigo desumanamente
Como vêm as ondas com o vento.

O belo dia liso como um linho
Interminável será sem um defeito
Cheio de imagens e conhecimento.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

O Poeta


de Trieste e una donna, 1910-1912) Trdução de David Mourão Ferreira
O poeta tem os seus dias
contados,
como todos os homens; mas quanto,
quanto mais variados!
As horas do dia e as quatro estações,
um tanto menos de sol ou mais de vento,
são o devaneio, o acompanhamento
sempre diverso para suas paixões,
sempre as mesmas; e o tempo que faz,
ao levantar-se, eis o grande acontecimento
do dia, sua alegria assim que desperta.
Nada como as luzes contrárias o alegra,
nada como os belos dias
movimentados,
e em longas histórias multidões imersas,
onde o azul e a tempestade duram pouco,
onde se alternam searas de infortúnio
e de vitória.
Com um rubro crepúsculo se entusiasma;
e com as nuvens muda de cor,
ainda que lhe não mude a alma.
O poeta tem os seus dias
contados,
como todos os homens; mas quanto,
quanto mais abençoados!

UM POEMA PARA TI

Com os momentos guardados
... Fiz um poema para ti.
Não há mais nada, neste mundo
De poemas cantados.
Na minha varanda sem telhados
Apanhei o sol e meti-o na gaiola
Da vida que levo.
Colhi uma folha de trevo
E meti-a entre as folhas do livro
Que deixaste,
do muito que não disseste
E que sentiste.
Quando sorriste,
Colhi o luar dos teus olhos verdes
Na madrugada do teu corpo nu,
Lírico, palpitante...
E como amante,
Com os momentos guardados
Fiz um poema para ti.

UMA TROCA SIMPLES DE MÃOS PARA QUE A MELODIA VINGUE

 
 
 
AMADEU BAPTISTA, in 366 POEMAS QUE FALAM DE AMOR

...
Uma troca simples de mãos para que a melodia vingue
no andamento em que nos reconhecemos.
Uma fracção de tempo, um disparo
para que se entreteçam as pedras, os blocos de fogo.

Hoje disponho o mar ante os teus olhos, a tempestade,
a crueza sistemática das coisas, essa chuva que arde
neste efémero instante
que corta a costa, a barra, o farol.

De onde venho? Correspondo a que uivo
nesta solidão entre o abismo e coisa nenhuma?

O HORIZONTE DAS PALAVRAS

 
 
 
ANTÓNIO RAMOS ROSA, in ACORDES

Sem direcção, sem caminho
... escrevo esta página que não tem alma dentro.
Se conseguir chegar à substância de um muro
acenderei a lâmpada de pedra na montanha.
E sem apoio penetro nos interstícios fugidios
ou enuncio as simples reiterações da terra,
as palavras que se tornam calhaus na boca ou nos meus passos.
Tentarei construir a consistência num adágio
de sílabas silvestres, de ribeiros vibrantes.
E na substância entra a mão, o balbucio branco
de uma língua espessa, a madeira, as abelhas,
um organismo verde aberto sobre o mar,
as teclas do verão, as indústrias da água.
Eu sou agora o que a linguagem mostra
nas suas verdes estratégias, nas suas pontes
de música visual: o equilíbrio preenche os buracos
om arcos, colinas e com árvores.
Um alvor nasceu nas palavras e nos montes.
O impronunciável é o horizonte do que é dito.

DOS PÁSSAROS E DOS HOMENS

 
 
JOAQUIM PESSOA, in PORTUGUÊS SUAVE

DOS PÁSSAROS E DOS HOMENS

De pássaros não sei nada.
... Também Sócrates diria que dos pássaros nada soube.
Porque um poeta é um filósofo. E um filósofo
é sempre um poeta.
E um poeta não deve saber dos pássaros
mas dos homens.

Eu confesso: de pássaros nada sei.
Sei dos homens. Mas pouco.
Por isso os estudo. Falo deles. Amo-os ou odeio-os.
Aliás, entre os homens raramente há sentimentos intermédios
como a indiferença, por exemplo.
Não consta que os pássaros os conheçam.

Os homens são muito importantes para um poeta.
Tão importantes como as palavras.
Direi mesmo mais importantes.
Porque não poderão existir palavras e poetas sem homens
mas os homens já existiam sem palavras e sem poetas.
E mesmo as palavras e a poesia sem homens não serviriam para nada.

Portanto temos
primeiro o homem
depois a palavra
e por fim o poeta.

Na poesia, é pois, fundamental, o homem.
Sendo assim, é natural que eu fale dos homens
e me recuse a falar dos pássaros
porque, também, para falar de um assunto
é preciso estudá-lo
conhecê-lo
e, como eu já disse, de pássaros não sei nada
prefiro falar dos homens embora deles não saiba tudo
mas vou analisando-os
tentando conhecê-los melhor
em vez de analisar e tentar conhecer os pássaros
porque me parece
não poder haver uma relação por aí além
entre o pássaro e o homem
nem os pássaros poderão resolver os problemas dos homens
(habitação, ensino, desemprego, etc.)
num um homem só que seja pode ser explorado
por um ou mais pássaros
nem os os pássaros fizeram explodir nunca uma bomba atómica
ou se juntaram em bandos para discutir
se hão-de construir centrais nucleares para matar alguns homens
em benefício de qualquer pássaro
ou ainda para conferenciar sobre a bomba de neutrões
que pode ao mesmo tempo matar os pássaros e todos os homens.

Por todas estas razões proponho que
a poesia fale do homem para o homem

porque:

a) falando dos pássaros a poesia fala só dos pássaros;

b) falando dos homens, a poesia fala de tudo
(até dos pássaros);

c) os pássaros nunca poderão entender a poesia nem os poetas nem os outros homens;

d) a poesia falando dos homens fará com que os homens possam entendê-la e entender não só os poetas como também os pássaros e, sobretudo, o que é fundamental, entenderem-se entre si o mais depressa possível.

GOSTARIA TANTO

 
 
JOSÉ LUÍS OUTONO, in DA JANELA DO MEU (A)MAR


Gostaria tanto….
... De tocar a superfície da maresia
Com as minhas mãos sedentas e sentir-te apelo…

Gostaria tanto …
De escrever-te pétalas tinta sorriso
E declamar-te com os teus versos partilha…

Gostaria tanto…
De amar-te murmúrio doce
Na tua entrega paixão querer de ti segredo nosso…

Gostaria tanto…
De dizer-te o que me queres soletrar
No prolongar infinito do teu enleio alma…trajecto redacção…

Gostaria tanto…
De ouvir as tuas canções nossas
E invejar o teu saber dizer de poemas versus coração…

Gostaria tanto…
De me render à tua “luta” apego
E ficar prisioneiro do único amor com o amor que entoas…

Gostaria tanto…
De nada saber e tudo me ensinares
No cultivar sólido de sabores teus…doados nossos…

Gostaria tanto…
De correr para ti…como menino carente
No fim de cada minuto saudade e sorrir no teu abraço abrigo…

Gostaria tanto…
De aprender contigo a moldar a cor do acto
E suspirar no acreditar da certeza página presente…

Gostaria tanto…
Que me escrevesses um poema silêncio
Em grito surdo de respiração suspensa …para lá do possível

Gostaria tanto
De nunca ter de conjugar verbo no passado
Porque a tua caligrafia semeia sempre futuro
em cada escrita dita…hoje presente…

Gostaria tanto…
De chorar …apenas para apagar vulcões de êxtase
Que me dás em oferta solta almejo de vida sempre a colorir…

Gostaria tanto…
De dizer-te paixão…com um obrigado abençoado…
Porque se Deus existe…tu és o Universo da felicidade…

Gostaria tanto…
De nunca findar este caminhar a dois
Onde exigisses amor com amor…até ao beijo final….

Gostaria tanto…
De dizer tanto…e tanto ouvir…
No tanto que há para viver…no tanto que há para amar…no tanto que há para dizer

Gostaria tanto…
De não te conhecer…e puxares a minha mão
Para te conhecer e percorrer estrada rio… nascente foz… mar… horizonte…sofreguidão conhecimento…o teu jardim…

Gostaria tanto…
De ouvir a tua verdade…nas verdades que tens…
Bálsamo fidelidade…código único…

Gostaria tanto…
Que a única diferença de sermos…fosse a interpretação
Homem …mulher…nunca o esgrimir
posições …porque somos…

Gostaria tanto…
De acordar…com o teu acordar…
E sentir-me com o teu acordo do acordo que rubricámos…



ANGIE SANTANA & LÍLIA TAVARES

O MESTRE


O mestre ajeitou a tela no cavalete diante da excelência colossal que se impunha diante do seu olhar incrédulo. Tanta beleza testemunhada iria suceder e imortalizar-se em mais um quadro que, quando concluído, teria que se decidir por vender ou guardar entre o espólio já tão multiplicado.
Misturava algumas tintas para obter a tonalidade quente e erótica da imagem que já tinha perpetuado nas suas sensações. Sentia a brisa fresca primaveril que despontava com a paisagem.
Gostava de pintar ao relento. A inspiração adivinhava-se mais impetuosa, mais sublime!

O cheiro das tintas trazia-lhe à memória o quadro completo. Conjecturava sempre a sua forma e conteúdo por antecipação. É o sublinhar do artístico genuíno que ganha sempre arquitectura de um molde ainda embrutecido, por escavar.

Sim, era mais um encontro com a nudez preenchida e branca nas pontas dos seus dedos. Fechava os olhos para antecipar as cores, para mandar para longe todas as imagens, que, teimosas, eram a companhia destes momentos em que acariciava o novo e o vivido, o cálido e o agreste dos seus anseios. De olhos semi-cerrados tudo agora era claro.

Uma aragem mais fresca fê-lo aconchegar a capa ao seu corpo, trémulo de espanto, novidade e memórias que passou para o pincel escolhido. Tomou-o entre os dedos para afagar a crina seca antes de o mergulhar na tinta ainda impreparada. Tocou, embebeu o pincel e iniciou, com paixão uma forma ainda irregular e sem sentido. O rumor de um melro na folhagem fê-lo sorrir. Não estava só nesta relação amorosa com o seu objecto que estava nu, a querer cobrir-se de aromas e desejos.....
...de sensações vividas tão longe como se o universo fosse reduzido a uma lua cheiíssima de emoções ainda por explorar!

A aragem trouxe-lhe a impressão de um sopro com sabor a batom encarnado, de uns lábios delineados do amor que adoraria ter de novo junto de si. De olhos fechados imaginou a silhueta de um corpo que conhecia de cor. Desprendeu-se do pincel e as pontas dos dedos acariciaram a tela branca como ele tinha um dia alimentado os mesmos pelos contornos do aveludado da pele da mulher amada.
Começavam a sobressair os esboços do projecto fantasiado. Um sonho de mulher, o ser mais belo de um mundo que lhe pertencia, iria eternizar-se na tela da cor do cal.
Desejaria poder perpetuar cada traço, cada marca que se lhe correspondia. A sua musa, um dia a jóia querida que deixou escapar entre as unhas ávidas de outras poesias! Nunca mais encontrou inspiração que lhe igualasse...

Olhou a tela, exausto, como se de si tivesse saído toda aquela energia e beleza, arrancadas do seu coração que tomava, enfraquecido, consciência do latente, sob os traços, leves aqui, marcados e mais vívidos e apaixonados ali. Tudo observou e sorriu. Esboçou um sorriso de incompletude, de entrega, de submissão.
“Esta tela nunca… vai poder ser exposta nem vendida”, disse num sussurro só para si. Tocou as manchas de cor mais expressivas, ardentes, íntimas e arredondadas. “Eleanora, Eleanora,…” e cruzou os braços, matizados dos tons e aromas da mulher…

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

"...Essa mulher lá do Minho
que da foice fez espada
há-de ter na lusa história
uma página doirada..."

Tradições do Minho (cantar os Reis e as janeiras)

 



A manhã “OS REIS” é o fim da quadra festiva do Natal, que se prolonga do dia 24 de dezembro, ao dia 6 de Janeiro.

Segundo lendas cristâs ancestrais foi nesta noite que três Reis provenientes do Oriente e guiados por uma estrela, visitaram Jesus recém nascido, em Belém na Palestina, ao qual ofereceram como prendas, Ouro, Incenso e Mirra…Não se sabe a origém ou a veracidade de tal feito, porém é uma lenda que se instalou no imaginário das pessoas e tem sido origem de investigações, por causa de qual seria essa misteriosa estrela que guiou, Baltasar, Gaspar y Melchior.

Em Portugal e principalmente no nosso Minho, em tempos idos os Reis eram festejados com intensidade y com muita alegria, mas é uma festa que tem vindo a decaír com o passar dos tempos e com a sociedade de consumo, que nós vivemos…recordo que na minha infancia juntavamos grupos que íam de porta em porta desde o Natal aos Reis cantar os Reis e as Janeiras, ás vezes o mesmo grupo que cantava os Reis tambem cantava as Janeiras, que consistia num grupo de rapazes e raparigas que se juntava, uns con armonicas, reques, ferrinhos, castanholas e alguns já mais adultos também concertina,etc, iam às casas de Atães e outras aldeias cantar os Reis ou as Janeiras, e os donos abriam as portas, davam um lanche, um copito, e uma pequena quantia em dinheiro (era uma vergonha não dar nada) também havia os que fechavam a porta, mas esses eram os mais sovinas, tudo isso fazia parte do espírito Natalicio da fraternidade.

Se os Reis eram para festejar o nascimento de Jesús de Nazaré, as Janeiras não se sabe ao certo, mas historiadores há que dizem que são do período pré Cristão, sendo assim uma tradição pagã, que se destinava a festejar o solstício de inverno…Hoje aínda restam muitos grupos que manêm estas tradições geralmente grupos que se juntam para o efeito só por alturas do Natal e Ano Novo, Grupos Corais, ou, ranchos Folclóricos, e assim se vão mantendo estas tadições porém não com a pujança de tempos idos.

PERNOITAS EM MIM

 
AL BERTO, in O MEDO


...
pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória...amas
ou finges morrer
 
pressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelas

é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente
envelheço com a nómada solidão das aves
 
já não possuo a brancura oculta das palavras
e nenhum lume irrompe para beberes

Outras Tradições Algarvias...

Nas vésperas do Ano Novo, as Janeiras ressumam um sentimento mais dramático e emocionante, quando cantadas no género destas que passamos a citar:

Esta noite é de Ano Bom,
É noite de mer’cimentos,
Por ser a primeira noite
Que Jesus sofreu tormentos.

Foram eles tantos, tantos,
Que até a carne lhe cortaram;
O Menino ficou, ferido,
Pingas de sangue lhe tiraram.

Foram três pingas de sangue,
Não nas deixem apanhar:
Uma é para o povinho.
Outra é para o jantar
E das três a que sobrar
Essa é para o Deus Menino.

As Janeiras não se cantam,
Mas nós vimo-las cantar,
Pedindo anos melhorados
E longa vida gozar.

Quanto às cantigas dos Reis, vulgarmente denominadas “reisadas”, verificámos que o seu carácter é mais histórico, versando sobretudo a viagem dos três Reis Magos pelos áridos desertos:


Quem são os três cavaleiros
Que fazem sombra no mar?
São os reis do Oriente
Que a Cristo vêm adorar.

Lá das bandas do Oriente
Os três Reis Magos se partem;
Guiados por uma estrela,
Vêm ver outro Sol que nasce.

Esse Sol dizem que é Cristo,
Filho do Eterno Pai,
Que vem salvar este mundo,
Revestindo humana carne.

Aquele Herodes malvado,
Mui perverso e daninho,
Mandou ensinar aos Reis
Às avessas o caminho.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

SONETO DO AMIGO



 Enfim, depois de tanto erro passado
 Tantas retaliações, tanto perigo
 Eis que ressurge noutro o velho amigo
 Nunca perdido, sempre reencontrado.

 É bom sentá-lo novamente ao lado
 Com olhos que contêm o olhar antigo
 Sempre comigo um pouco atribulado
 E como sempre singular comigo.

 Um bicho igual a mim, simples e humano
 Sabendo se mover e comover
 E a disfarçar com o meu próprio engano.

 O amigo: um ser que a vida não explica
 Que só se vai ao ver outro nascer
 E o espelho de minha alma multiplica...
 Vinicius de Moraes
 
 
RESOLVI LAVRAR O MAR


Resolvi lavrar o mar
Mas com todo o cuidado
Não vá ele acordar
... E depois ficar amuado

É uma nova semente
Que lá quero deixar
Lua nova, quarto crescente
E o Mundo vai mudar

De manhã ao acordar
Revejo-o no horizonte
São ondas, barcos a velejar
Risos de gente a monte

À tarde e ao escurecer
Vejo um farol iluminado
É um poeta a escrever
Sobre o grande mar lavrado

E com o mar no pensamento
As palavras ganham alma
Bailam de contentamento
E esperam pela barca alva



                                                             Ana Flausino

 

A MEU FAVOR

 
 
ALEXANDRE O’NEILL, in POESIAS COMPLETAS


A MEU FAVOR

...
A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde tudo recomeça.

A NOSSA CASA




FLORBELA ESPANCA, in CHARNECA EM FLOR



A nossa casa, Amor, a nossa casa!
Onde está ela, Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Constrói-a, num instante, o meu desejo!

Onde está ela, Amor, a nossa casa,
O bem que neste mundo mais invejo?
O brando ninho aonde o nosso beijo
Será mais puro e doce que uma asa?

Sonho... que eu e tu, dois pobrezinhos,
Andamos de mãos dadas, nos caminhos
Duma terra de rosas, num jardim,

Num país de ilusão que nunca vi...
E que eu moro - tão bom! - dentro de ti
E tu, ó meu Amor, dentro de mim...

CECÍLIA MEIRELES




Por muitas esquinas
de muitas cidades
... existem ruínas
de felicidades.

Pedras de esperanças.
Ventos de suspiros.
Oh, juras e giros
de antigas andanças!

Por muitas cidades
de muitas esquinas
ficaram neblinas
quase de saudades.

Aos fantasmas vivos
parecem estranhas
as coisas tamanhas
de que eram cativos.

Aquelas esquinas!
aquelas cidades!
aquelas divinas
inutilidades!

Não somos só brumas?
ruínas apenas
de sonhos e penas
nenhuns e nenhumas?

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

INTENSA PAIXÃO...

EÇA DE QUEIRÓS - SEMPRE ACTUAL...

 
“Em Portugal não há ciência de governar nem há ciência de organizar oposição. Falta igualmente a aptidão, e o engenho, e o bom senso, e a moralidade, nestes dois factos que constituem o movimento político das nações.

A ciência de governar é neste país uma habilidade, uma rotina de acaso, diversamente influenciada pel...a paixão, pela inveja, pela intriga, pela vaidade, pela frivolidade e pelo interesse.

A política é uma arma, em todos os pontos revolta pelas vontades contraditórias; ali dominam as más paixões; ali luta-se pela avidez do ganho ou pelo gozo da vaidade; ali há a postergação dos princípios e o desprezo dos sentimentos; ali há a abdicação de tudo o que o homem tem na alma de nobre, de generoso, de grande, de racional e de justo; em volta daquela arena enxameiam os aventureiros inteligentes, os grandes vaidosos, os especuladores ásperos; há a tristeza e a miséria; dentro há a corrupção, o patrono, o privilégio.

A refrega é dura; combate-se, atraiçoa-se, brada-se, foge-se, destrói-se, corrompe-se. Todos os desperdícios, todas as violências, todas as indignidades se entrechocam ali com dor e com raiva.

À escalada sobem todos os homens inteligentes, nervosos, ambiciosos (...) todos querem penetrar na arena, ambiciosos dos espectáculos cortesãos, ávidos de consideração e de dinheiro, insaciáveis dos gozos da vaidade.”

Eça de Queiroz, in 'Distrito de Évora” (1867)

O PARAÍSO...

FOTO DO KODILU

MISTÉRIO...

BENGUELA...


Recreei-te em saudade e cor
Quando me afastei de ti
E os limites que te fiz
São dentro do meu sentir.

Por cima a cor neutra e desdobrada
Dum céu de cinzas de passado.

O Sombreiro como um marco
marco um lado.

As curvas nuas e douradas
de montes femininos
Nus até à cintura verde
Verde dos longos canaviais
Anunciam o limite de Benguela.

Na areia a longa e estreita ferida
Do Cavaco
Escorrendo o sangue de água
Que abre em bananais sombrios
Caminhos às fábulas de antanho
Marca outra fronteira da Cidade.

Para outro lado estende-se o sertão
Palmeiras espetadas pelo mato
Como flechas da aljava
do Soba Caparandanda
Sombreiam a curva dos caminhos
Perdidos na imensidão...

Por outro limite tem Benguela
Saudade no meu coração
E pela frente aberto e vasto
Tem este mar ardente de oiro e poentes
Este mar imenso que sorri ao longe.

Este mar imenso que também chora
E conta histórias de espumas e naufrágios,

Mar que também banha os seios jovens
Das moças que embalam sonhos
Nas sombras azuis dos quintalões

Altas paredes de adobe
Cheias de sonhos e histórias

Que viram as longas caravanas da borracha
E passos perdidos pelos caminhos sem glórias

Molhadas de lágrimas,
Salobras lágrimas
De anseios há muito mortos...
Mais amargos do que o mar
O mar salgado que chora
Cantos de não mais voltar...

Lábios de mar, feitos de espuma, beijando o céu...

Sons dos sinos da Senhora do Pópulo
(Que sabem tudo e que viram tudo,
e nunca contam nada...)
Aconchegam os amantes que se beijam
nos velhos bancos verdes do jardim...

Sob as árvores antigas
Que o vento sul esporeia
Como uma zebra azul
Feita de nuvens e céu.

Coração quente e generoso de Benguela
Bairros do Benfica, Cassôco,
Águas da Cacimba da Rua Nove
Repouso claro e lento
De luas nascidas longe
Na noite semeada de astros
Como olhos de Cazumbis,...

Na noite enorme e feiticeira da cidade

Bruxuleante do bruxedo de fogueiras
Feitas de amores velhos, carcomidos,
Adormecidos, nas velhas casas compridas.

E de fogueiras de verdade que acalentam
Ritmos de guardas da noite
tocados em quissanges melodiosos
Subtis como a própria alma da brisa
Que arranca da terra o sangue vivo
Duma pena antiga que se perde...

Noite semeada de batuques
Batuques que me parecem

O palpitar dum coração imenso
Que se esvai nas noites desdobradas
Num rosário de auroras sucessivas.

Minha Benguela nocturna e antiga
Das amplas ruas cheirando a mar
Colmeia de lembranças que me ferem
Perante a dura realidade do progresso...

Volta:
Volta para os sete limites deste sonho
Sob a grande tristeza vegetal das frondes
Cheias de mistérios ancestrais
Do meu passado que não volta mais...

ANGOLA PROFUNDA...!




A COR DA TERRA...

A ALEGRIA DAS GENTES...

 
De Valério Guerra (Angola)
 
Tenho memória
de uma fresca luminosidade
pousada nos ombros da Serra
deixada pelas aves
em peregrinação ao paraíso

e de no algodão das nuvens
haver formas e presságios
que os meus dedos percorriam

e à alma traziam contágios
dos astros que luziam

e de uma grandeza imensa

enquanto cá em baixo
nos purificadores verdes
vivificantemente apensa
às mimosas nas paredes

se entrosava a vida
que deuses têm por lida.

A PARAGEM DE HOJE É EM AVEIRO - CASTELO DE STª MARIA DA FEIRA



  Breve resenha Histórica


· Quando em meados do séc. IX Afonso III de Leão criou a região administrativa e militar a que deu o nome de Terra de Santa Maria, a sua chefia foi entregue a uma fortaleza militar ali existente, a Cívitas Sanctae Mariae.

Durante muitos anos esta fortaleza funcionou como base avançada das tropas da reconquista cristã e como sentinela contra as invasões árabes vindas do sul.

Por duas vezes, no ano 1000, Almansor – o lendário guerreiro árabe – conquistou o Castelo e arrasou a povoação anexa. E por duas vezes, também, os guerreiros e habitantes cristãos reconquistaram a fortaleza, reconstruíram a povoação e lhe mantiveram o nome de Civitas Sancta Mariae.

Isto atesta bem a coragem e a firmeza das convicções religiosas daquelas gentes.


· No reinado de Bermudo III ( 1028 a 1037) os guerreiros árabes invadiram de novo esta zona, mas foram de rechaçados na batalha de Cesár numa povoação que ainda hoje mantém este nome e está situada nas proximidades do Castelo. Os governadores de então - Men Guterres e Men Lucídio desenvolveram depois um trabalho gigantesco para reconstrução do Castelo e desenvolvimento da Terra de Santa Maria. Por este facto, os reis leoneses distinguiram uma grande parte da população com mercês especiais: - a “Honra de Infanções”, para se avaliar da importância deste título, basta recordar que só no séc. XIV obtiveram idêntico privilégio os “juizes, almotaceis, corregedores e vereadores” da cidade de Lisboa.

Na carta régia de 10 de abril de 1423, que atribuiu estas mercês, alude-se expressamente ao intento de equiparação aos “infanções da Terra de Santa Maria”.


· Durante largos anos, a “Terra de Santa Maria” foi “terra de fronteira” com os árabes. Só depois da conquista de Coimbra (1067) este território deixou de ser “zona de guerra”. Mas não foi, também, “zona de paz” tal como sucedia com as povoações a norte do Douro. Depois daquela conquista de Coimbra, aquele território, funcionou como o grande “viveiro” de cavaleiros e de peões que alimentava a frente sul. Isto só foi possível, porém, pelo caracter permanente da organização militar instalada na “Terra de Santa Maria”.


· Após a morte do conde D. Henrique, senhor do Condado Portucalense, a viúva, D. Teresa, deixou-se envolver com um fidalgo galego, Fernão Peres de Trava, ao serviço do Arcebispo de Compostela D. Diogo Galmirez, que tinha a intenção de submeter ao controle da Galiza o Condado Portucalense. Como guarda avançada, tinham vindo para o Condado, especialmente para o Porto – onde Fernão de Trava governava já – grandes migrações galegas. Com o tempo, a pequena burguesia portucalense começou a ser substituída por gentes da Galiza. Mais tarde, o ataque económico e administrativo estendeu-se aos grandes senhores de terras e de poder, quer a norte, quer a sul do Douro. Assim sucedeu às famílias Moniz, de Riba Douro (Ermígio, Mendo e Egas), Sousas (da Maia), Nuno Soares (de Grijó) e à família de Pero Gonçalves (de Marnel). Estas famílias, que tinham vastas propriedades quer no Alto Minho, Lamego, quer na Terra de Santa Maria, foram sendo confrontadas com a ameaça de perderem tudo- cargos, prestígio, e bens – por intervenção de uma campanha orquestrada do exterior, primeiramente subtil e, depois frontal.



Dentro destas famílias notáveis, é justo destacar dois nomes: Ermígio Moniz e Pero Gonçalves do Marnel.

O primeiro, ao tempo de revolta dos barões portucalenses, era alcaide do Castelo de Neiva. Antes tinha sido afastado do governo da Terra de Santa Maria e da alcaidaria do Castelo. Figura muito próxima do Infante D. Afonso, era irmão do célebre Egas Moniz, que também tinha sido afastado da Terra de Lamego.

O segundo, Pero Gonçalves de Marnel, tinha sido substituído no governo de Coimbra pelo próprio Fernão Peres de Trava. Ao tempo da revolta (1127/1128) era governador da Terra de Santa Maria e alcaide do Castelo do mesmo nome.

O galego Fernão Peres de Trava ocupava assim o governo dos dois pólos fundamentais do Condado Portucalense – o de Portucale e de Coimbra.


Uma hora houve em que estas famílias resolveram juntar-se e revoltar-se. A este movimento de revolta esteve ligado o Infante D. Afonso que, também, não via com bons olhos a situação da mãe e que começava a temer pelo futuro que lhe estava a ser reservado. Ele, que, ao tomar a iniciativa de se armar cavaleiro, por si próprio, em Zamora, estava a usar de uma prerrogativa reservada somente aos filhos de reis...

Com o poderio da sua força militar organizada, com o apoio da pujança da sua vida económica e com o estímulo do sentimento de independência de que já desfrutavam, os homens de Santa Maria avançaram para Guimarães – então capital do poder político – e onde o Infante D. Afonso se encontrava já a mobilizar as gentes daqueles sítios.

Ermígio Moniz, a norte do Douro e a partir do Castelo de Neiva, para lá se dirigiu também com as suas forças. Para a mesma cidade de Guimarães convergira Fernão Peres de Trava com as tropas de Coimbra, apoiado com o reforço das forças galegas que a ele se juntaram no Castelo de Lanhoso.

Em 13 de Junho de 1128 as tropas galegas foram vencidas. Esta batalha - indiscutível marco da história pátria - não foi, pois, a causa da nossa independência, mas a consequência de um movimento independentista de caracter colectivo e abrangendo uma grande área do Condado quer a norte quer a sul do Douro. A tentativa, por parte da Galiza de extinguir rapidamente o movimento independentista latente acabou por precipitar a mesma independência.

Neste movimento militar intervieram, pois, com indiscutível influência dois personagens fortemente ligados à Terra e ao Castelo de Santa Maria: Pero Gonçalves de Marnel e Ermígio Moniz

A MULHER

 
 
ANTÓNIO RAMOS ROSA, in O VOLANTE VERDE

Se é clara a luz desta vermelha margem
... é porque dela se ergue uma figura nua
e o silêncio é recente e todavia antigo
enquanto se penteia na sombra da folhagem.
Que longe é ver tão perto o centro da frescura

e as linhas calmas e as brisas sossegadas!
O que ela pensa é só vagar, um ser só espaço
que no umbigo principia e fulge em transparência.
Numa deriva imóvel, o seu hálito é o tempo
que em espiral circula ao ritmo da origem.

Ela é a amante que concebe o ser no seu ouvido, na corola
do vento. Osmose branca, embriaguez vertiginosa.
O seu sorriso é a distância fluida, a subtileza do ar.
Quase dorme no suave clamor e se dissipa
e nasce do esquecimento como um sopro indivisível.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Quase sem Querer..

 
 
 
 
JOSÉ MORAIS


A vida não parou,
Sei que vais aparecer..
Mesmo quando nada,...
Parece surgir..
Deixa eu mostrar-te,
Que tudo faz sentido..
Sabes que..
Foi aquele olhar,
Onde a alma,
Abraçava o coração,
Me salvou..
Fez nascer um futuro,
Dentro de mim.
Nesse momento,
Todas,
As muralhas caíram,
Os meus sentidos,
Desistiram de sofrer,
O tempo,
Voltou a encher o sol,
Que vivia,
Apagado..
Dentro de mim..
E secou,
O meu olhar,
Encharcado..
Só hoje..
Vou acender-me,
Outra vez..
Onde mesmo,
Sem saberes,
A minha vida..
Depende de ti.
Como as estrelas,
Do luar..
Um dia,
Quando te perderes..
Eu vou-te achar..
Para te salvar..
Para te guiar..
Em mim.
Detalhes,
Que só o tempo,
Irá resolver..
Não tenho distância,
Nem limites,
Desconheço ,
Um mundo assim..
Um dia,
Estaremos juntos,
Até ao fim.

    VEM COMIGO

     
     
    AL BERTO, in O MEDO

     VEM COMIGO

    ...
    vem comigo
    ver as pirâmides fantásticas do vento
    no interior luminoso da terra encontrarás
    o segredo de quartzo para desvendares o tempo
    onde contemplamos a fulva doçura das cerejas

    iremos para onde os restos de vida não acordem
    a dor da imensa árvore a sombra
    dos cabelos carregados de pólenes e de astros
    crescemos lado a lado com o dragão
    o súbito relâmpago dos frutos amadurecendo
    iluminará por um instante as águas do jardim
    e o alecrim perfumará os noctívagos passos
    há muito prisioneiros no barro
    onde o rosto se transforme e morre
    e já não nos pertence

    vem comigo
    praticar essa arte imemorial de quem espera
    não se sabe o quê junto à janela
    encolho-me
    como se fechasse uma gaveta para sempre
    caminhasse onde caiu um lenço
    mas levanto os olhos
    quando o verão entra pelo quarto e devassa
    esta humilde existência de papel

    vem comigo
    as palavras nada podem revelar
    esqueci-as quase todas onde vislumbro um fogo
    pegando fogo ao corpo mais próximo do meu


    PENSO EM TI NO SILÊNCIO DA NOITE, QUANDO TUDO É NADA



     
     
    ÁLVARO DE CAMPOS (FERNANDO PESSOA)



    Penso em ti no silêncio da noite, quando tudo é nada,
    E os ruídos que há no silêncio são o próprio silêncio,
    Então, sozinho de mim, passageiro parado
    De uma viagem em Deus, inutilmente penso em ti.

    Todo o passado, em que foste um momento eterno
    E como este silêncio de tudo.
    Todo o perdido, em que foste o que mais perdi,
    É como estes ruídos,
    Todo o inútil, em que foste o que não houvera de ser
    É como o nada por ser neste silêncio nocturno.

    Tenho visto morrer, ou ouvido que morrem,
    Quantos amei ou conheci,
    Tenho visto não saber mais nada deles de tantos que foram
    Comigo, e pouco importa se foi um homem ou uma conversa;
    Ou um [...] assustado e mudo,
    E o mundo hoje para mim é um cemitério de noite
    Branco e negro de campas e [...] e de luar alheio
    E é neste sossego absurdo de mim e de tudo que penso em ti.
     

    EU QUERIA...

     
     
    Eu queria mais altas as estrelas,
    Mais largo o espaço, o sol mais criador,
    Mais refulgente a lua, o mar maior,
    Mais cavadas as ondas e mais belas;

    ... Mais amplas, mais rasgadas as janelas
    Das almas, mais rosais a abrir em flor,
    Mais montanhas, mais asas de condor,
    Mais sangue sobre a cruz das caravelas!

    E abrir os braços e viver a vida,
    - Quanto mais funda e lúgubre a descida
    Mais alta é a ladeira que não cansa!

    E, acabada a tarefa... em paz, contente,
    Um dia adormecer, serenamente,
    Como dorme no berço uma criança!



    Florbela Espanca

    CASTELO DE CHAVES...RETOMAMOS A VIAGEM..!


    O castelo medieval
    À época da Reconquista cristã da península Ibérica, Chaves foi inicialmente tomada aos mouros por Afonso III de Leão (866-910), que teria determinado uma reconstrução de suas defesas. Esta primitiva edificação do castelo é atribuída ao conde Odoário, no século IX. No primeiro quartel do século X, entretanto, Chaves voltou a cair no domínio mouro.
    Afonso VI de Leão e Castela incluiu a povoação de Chaves no dote da princesa Teresa de Leão e Castela, quando a casou com o conde D. Henrique de Borgonha (1093), passando a integrar os domínios do Condado Portucalense. A tradição local refere, entretanto, que, por volta de 1160, os irmãos Rui e Garcia Lopes, cavaleiros de D. Afonso Henriques, conquistaram Chaves para a Coroa portuguesa. Por este feito, teriam sido recompensados pelo soberano com os domínios da povoação e seu castelo. Os corpos dos irmãos encontram-se sepultados na Igreja de Santa Maria Maior.
    Por volta de 1221, Afonso IX de Leão e Castela, visando assegurar para a sua esposa, D. Teresa, infanta de Portugal, a posse dos castelos que o pai dela, Sancho I de Portugal (1185-1211) lhe legara em testamento, e que o irmão, Afonso II de Portugal lhe reivindicava, invadiu Portugal, conquistando Chaves. O domínio de Chaves só seria devolvido a Portugal entre o final de 1230 e o início de 1231, em virtude de negociações tratadas na vila do Sabugal (então leonesa), entre Sancho II de Portugal e Fernando III de Leão e Castela.
     
    Embora tradicionalmente se afirme que Chaves foi o local das núpcias de Afonso III de Portugal (1248-1279) com a infanta D. Beatriz, filha ilegítima de Afonso X de Castela, na realidade o soberano dirigiu-se a Santo Estevão de Chaves (1253). Foi este soberano quem, determinando a reconstrução de suas defesas, outorgou o primeiro foral a Chaves, em 1258, com direitos idênticos aos de Zamora, no reino de Leão. Data desta época, assim, o início da reconstrução do castelo com a ereção da torre de menagem, para o que construibuiam os moradores dos termos de Chaves e de Montenegro mediante o pagamento da anúduva. Alguns autores referem que a construção desta torre de menagem foi uma resposta à construção do Castelo de Monterey, no lado oposto da fronteira, no reino da Galiza.
    O seu sucessor, Dinis de Portugal (1279-1325), deu prosseguimento às obras, concluíndo a torre de menagem e a cerca da vila. Afonso IV de Portugal (1279-1325), por sua vez, confirmou o foral à vila (1350).
    No contexto da crise de 1383-1385, a vila de Chaves tomou partido por D. Beatriz e D. João I de Castela. Após a batalha de Aljubarrota (1385), as forças do Condestável D. Nuno Álvares Pereira, impuseram cerco ao castelo, que se estendeu de Janeiro a Abril de 1386, até à rendição de seu alcaide-mor, Martim Gonçalves de Ataíde. Em recompensa, D. João I de Portugal doou estes domínios ao Condestável, que os legou como dote a sua filha D. Beatriz, pelo casamento com D. Afonso, 1° duque de Bragança. Por este motivo, alguns autores também denominam o Castelo de Chaves como o Castelo do Duque de Bragança.
    Sob o reinado de D. Manuel I (1495-1521), a povoação e seu castelo encontram-se figurados por Duarte de Armas (Livro das Fortalezas, c. 1509). Chaves recebeu o Foral Novo do soberano a 7 de Dezembro de 1514.

    [editar] Da Guerra da Restauração aos nossos dias

    O castelo voltaria à ação durante a Guerra da Restauração, tendo-lhe sido modernizadas as defesas, adaptadas aos então modernos tiros de artilharia. Para esse fim, entre 1658 e 1662 foram reconstruídas as muralhas da vila, mais baixas, com traçado abaluartado, escavados fossos secos, colocadas estacas no Alto da Trindade, e erguidos o Revelim da Madalena e o Forte de São Francisco, sob a direção do Governador Militar, D. Rodrigo de Castro, conde de Mesquitela. Numa segunda etapa, entre 1664 e 1668 a estacaria do Alto da Trindade deu lugar ao Forte de São Neutel, sob a orientação do Governador Militar, General Andrade e Sousa.
    No contexto da Guerra Peninsular estas defesas voltariam a ser guarnecidas. Com a paz, as muralhas de Chaves foram sendo absorvidas pelo progresso urbano, conforme exemplificado na região da Porta do Anjo e na da Rua do Sol.
    No século XX, Chaves foi elevada a cidade a 12 de Março de 1929, estando o seu castelo classificado como Monumento Nacional por Decreto publicado em 22 de Março de 1938. No final da década de 1950, a Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) iniciou uma série de intervenções de consolidação, limpeza, restauro e reconstrução das suas defesas. Os trabalhos prosseguiram ao longo das décadas de 1960 e de 1970, culminando, em 1978, com a instalação de um museu histórico-militar nas dependências da torre de menagem do castelo medieval. Nele os visitantes encontram expostas armas, uniformes, bandeiras, desenhos e plantas, desde a Idade Média até à aos nossos dias. A década de 1980 foi marcada pela execução de diversos trabalhos de beneficiação e por pesquisa arqueológica nos jardins do castelo, a sul da torre de menagem (1985), ao passo que a da 1990 deu prioridade à requalificação dos espaços do Forte de São Francisco e do Forte de São Neutel.

    PORTO DE ABRIGO

     
     
     
    JOSÉ GABRIEL DUARTE
    ..
    No teu porto de abrigo,
    nas águas do teu silêncio,
    já livre de perigo,
    salvo de um mar fingido,
    aproximo,
    ajudas-me a acostar,
    em teu cais,
    onde te oiço
    adormeço,
    e esqueço,
    as minhas dúvidas,
    os meus receios,
    os meus anseios,

    descanso agora em ti,
    retido,
    recolhido,
    no meu corpo de abrigo
    agora quero-te abrigar.

    O HORIZONTE DAS PALAVRAS

     
     
    ANTÓNIO RAMOS ROSA, in ACORDES

     Sem direcção, sem caminho
    ... escrevo esta página que não tem alma dentro.
    Se conseguir chegar à substância de um muro
    acenderei a lâmpada de pedra na montanha.
    E sem apoio penetro nos interstícios fugidios
    ou enuncio as simples reiterações da terra,
    as palavras que se tornam calhaus na boca ou nos meus passos.
    Tentarei construir a consistência num adágio
    de sílabas silvestres, de ribeiros vibrantes.
    E na substância entra a mão, o balbucio branco
    de uma língua espessa, a madeira, as abelhas,
    um organismo verde aberto sobre o mar,
    as teclas do verão, as indústrias da água.
    Eu sou agora o que a linguagem mostra
    nas suas verdes estratégias, nas suas pontes
    de música visual: o equilíbrio preenche os buracos
    com arcos, colinas e com árvores.
    Um alvor nasceu nas palavras e nos montes.
    O impronunciável é o horizonte do que é dito.

    LUÍS VAZ DE CAMÕES, in LÍRICA COMPLETA

    Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
    Muda-se o ser, muda-se a confiança;
    Todo o mundo é composto de mudança,
    Tomando sempre novas qualidades.

    Continuamente vemos novidades,
    Diferentes em tudo da esperança;
    Do mal ficam as mágoas na lembrança,
    E do bem, se algum houve, as saudades.

    O tempo cobre o chão de verde manto,
    Que já coberto foi de neve fria,
    E em mim converte em choro o doce canto.

    E, afora este mudar-se cada dia,
    Outra mudança faz de mor espanto:
    Que não se muda já como soía.

    domingo, 25 de dezembro de 2011

    NATAL

     
     
     
    MIGUEL TORGA, in ANTOLOGIA POÉTICA 

     
    Outro natal,
    ... Outra comprida noite
    De consoada
    Fria,
    Vazia,
    Bonita só de ser imaginada.
    Que fique dela, ao menos,
    Mais um poema breve
    Recitado
    Pela neve
    A cair, ao de leve,
    No telhado.

    sábado, 24 de dezembro de 2011

    QUEM ÉS TU

     
     
     
     
    SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in OBRA POÉTICA

    ...
    Quem és tu que assim vens pela noite adiante,
    Pisando o luar branco dos caminhos,
    Sob o rumor das folhas inspiradas?

    A perfeição nasce do eco dos teus passos,
    E a tua presença acorda a plenitude
    A que as coisas tinham sido destinadas.

    A história da noite é o gesto dos teus braços,
    O ardor do vento a tua juventude,
    E o teu andar é a beleza das estradas.

    DE ESPERAS CONSTRUÍMOS O AMOR INTENSO E SÚBITO





    JOAQUIM PESSOA, in OS OLHOS DE ISA


    De esperas construímos o amor intenso e súbito

    que encheu as tuas mãos de sol e a tua boca de beijos.

    Em estranhos desencontros nos amamos.

    Havia o rio mas sempre ficávamos na margem.

    Eu tocava o teu peito e os teus olhos e, nas minhas mãos,

    a tarde projectava as suas grandes sombras

    enquanto as gaivotas disputavam sobre a água

    talvez um peixe inquieto, algo que nunca pudemos ver.

    As nossas bocas procuravam-se sempre, ávidas e macias

    E por muito tempo permaneciam assim, unidas,

    Machucando-se, torturando as nossas línguas quase enlouquecidas.

    Depois olhávamo-nos nos olhos

    No mais profundo silêncio. E, sem palavras,

    Partíamos com as mãos docemente amarradas e os corações estoirando uma alegria breve

    Quando a noite descia apaixonada

    Como o longo beijo da nossa despedida.

    URGENTEMENTE

     
     
     
    EUGÉNIO DE ANDRADE, in ATÉ AMANHÃ



    É urgente o amor.
    ... É urgente um barco no mar.

    É urgente destruir certas palavras,
    ódio, solidão e crueldade,
    alguns lamentos,
    muitas espadas.

    É urgente inventar alegria,
    multiplicar os beijos, as searas,
    é urgente descobrir rosas e rios
    e manhãs claras.

    Cai o silêncio nos ombros e a luz
    impura, até doer.
    É urgente o amor, é urgente
    permanecer.

    A aldeia onde nasci não é de ninguém

     
     
     
     
    JOSÉ MARIA ALMEIDA, in AMO UM ANJO


    A aldeia onde nasci não é de ninguém.
    ... É pequenina, metida no coração de alguém,
    mas nela nasci do ventre de minha mãe
    e nela cresci.

    A aldeia onde nasci é todo o universo;
    é uma estrela que esteja onde estiver
    me mostra por onde devo voltar;
    é uma seta na encruzilhada
    que me indica o caminho de casa;
    é a bússola de marinheiro
    que me afasta do sol poente
    e me chama para onde está
    a mulher que me ama;
    é o grito de minha mãe que me chama
    e em seu colo me aninha como uma eterna criança.

    A aldeia onde nasci é a árvore de que sou fruto;
    é a semente que foi lançada à terra
    e do húmus que absorveu
    e das tempestades que sofreu
    se fez mulher com um coração
    que em mim palpita, que me dá a vida
    e me guarda a morte para a hora que lhe aprouver.

    A aldeia onde nasci não tem casas
    nem ruas estreitas:
    são estradas que se estendem até ao horizonte
    descendo até ao fundo de mim.
    As pessoas que a habitam
    são aquelas que eu trouxe
    guardadas na alma e que todos os dias vejo
    a olharem-me no espelho
    em cada manhã com um rosto diferente,
    mas sempre as mesmas pessoas
    que eu fiz e amei e comigo guardei.

    A aldeia onde nasci deu-me tudo o que tenho
    e por isso a trago sempre comigo.

    sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

    [DOS CÉUS À TERRA DESCE A MOR BELEZA]

     
     
     
    LUIS VAZ DE CAMÕES



    Dos Céus à terra desce a mor Beleza,
    ... Une-se à nossa carne a falá-la nobre;
    E sendo a humanidade dantes pobre,
    Hoje subida fica à mor alteza.

    Busca o Senhor mais rico a mor pobreza;
    Que ao mundo o seu amor descobre,
    De palhas vis o corpo tenro cobre,
    E por elas o mesmo Céu despreza.

    Como? Deus em pobreza à terra desce.
    O que é mais pobre tanto lhe contenta,
    Que este somente rico lhe parece.

    Pobreza este Presépio representa;
    Mas tanto por ser pobre já merece,
    Que quanto mais o é, mais lhe contenta.

    OUTROS NATAIS




    Onde a magia dos Natais de outrora
    ... O presépio dos olhos da infância
    São José, a Virgem, o Menino
    Figuras modeladas, quase gente
    A mostrar-se ao espanto
    Dos pastores que vinham
    Em fila pelo musgo dos caminhos
    Para ofertar cordeiros e presentes.

    Onde a azáfama do rumor das mãos
    Nos alguidares de barro onde a farinha
    A abóbora, os ovos, o fermento
    Tomavam forma e gosto tão distantes.

    Aonde o sono arredio que não vinha
    Nessa Noite Sagrada em que os pinheiros
    Choram saudades de bosques e de estrelas
    Sob a caruma de luzes e de enfeites.

    Onde o mistério que seguia os passos
    Dos adultos no ranger das tábuas
    Em nossos passos furtivos de criança
    Na ânsia de encontrar em qualquer canto
    De barbas e de saco o Pai Natal.

    Quantos Natais assim em que a Família
    Se reunia inteira à grande mesa
    Da sala de jantar tão velha e gasta
    Que por magia nessa noite remoçava
    A transformar em cristal os vidros baços.

    Quantos presépios retidos na memória
    Quantos aromas ainda a Consoada
    Quantos sons a deixar nos meus ouvidos
    Os risos, os beijos, os abraços.

    Quantas imagens cingidas na penumbra
    Desta lembrança que se fez saudade
    Dos rostos, dos gestos, das palavras
    Na lonjura das vozes e da Casa.

    Noite Divina em que torno a ser criança
    Ante o meu olhar adulto e me desperto
    Na emoção que nos traz os anos:
    O meu Natal é hoje mais concreto
    Mas muito menos belo e mais deserto.

    Soledade Martinho



    SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN,in O CAVALEIRO DA DINAMARCA

    (5/8)

    “...Viajava agora com pressa para embarcar no porto de Génova num dos navios que, no princípio do Verão, sobem da Itália para Bruges, Gand e Antuérpia.
    Mas já no fim do caminho, a pouca distância de Génova, adoeceu. Foi talvez do sol que o escaldava enquanto cavalgava por vales e montes ou foi da água que bebeu de um poço onde iam à noite beber os sardões.
    Tremendo de febre, foi bater à porta dum convento. Os frades que o recolheram tiveram grande trabalho para o salvar, pois o Cavaleiro parecia ter o sangue envenenado e delirava dia e noite. Nesse delírio imaginava que nunca mais conseguia chegar ao seu país, pois Veneza erguia-se das águas e arrastava-o consigo para o fundo do mar, e as estátuas de Florença formavam exércitos de bronze e mármore que não o deixavam passar.
    Os frades trataram-no com chás de raízes de flores, com pílulas de aloés, com xaropes de mel e vinho quente, com pós misteriosos e emplastros de farinha e ervas. A febre foi baixando lentamente e só acabou de todo ao fim de um mês e meio. Então o Cavaleiro quis seguir viagem, mas estava tão fraco, magro e pálido que os frades não o deixaram partir.
    Teve de esperar mais um mês no pequeno convento calmo e silencioso. Estendido na sua cela caiada escutava o murmurar das fontes na cerca e os cânticos dos religiosos. Depois, à tarde, passeava no claustro quadrado admirando nas paredes as suaves pinturas dos frescos que contavam os milagres maravilhosos dos santos. Na parede da direita via-se Santo António pregando aos peixes e na parede da esquerda via-se São Francisco fazendo um pacto com o lobo de Gubbio.
    No meio do claustro corria uma fonte e em sua roda cresciam cravos e rosas brancas. No céu azul as andorinhas cruzavam o seu voo.
    E das colunas, do murmúrio da fonte, das flores, das pinturas e das aves erguia-se uma grande paz como se os homens, os animais, as plantas e as pedras tivessem encontrado um reino de aliança e de amor.
    Nesta paz as forças do cavaleiro cresciam dia a dia até que, a cabo de cinco semanas de descanso, ele pôde despedir-se dos frades e continuar o seu caminho.
    Então dirigiu-se para Génova.
    Mas quando chegou ao grande porto do mar era já o fim de Setembro e os navios que seguiam para a Flandres já tinham partido todos. Percorreu o cais, falou com os capitães, foi à casa dos armadores. A resposta que lhe davam era sempre a mesma: só daí a vários meses poderia arranjar navio para a Flandres.
    Primeiro o Cavaleiro ficou desesperado com estas notícias e durante dois dias não comeu nem dormiu. Mas depois recuperou o ânimo e resolveu seguir viagem por terra, a cavalo, até Burges.
    Atravessou os Alpes, atravessou os campos, as planícies, os vales e as montanhas da França.
    Agora só parava para comer e dormir, ansioso de chegar antes do Natal à sua terra.
    Mas quando chegou à Flandres era já Inverno e sobre os telhados e os campos caía a primeira neve.
    O Cavaleiro dirigiu-se para a Antuérpia e aí procurou o negociante flamengo, para o qual o banqueiro Averardo lhe tinha dado uma carta.
    Encontrou o negociante em sua casa, aquecendo as mãos à lareira, vestido com uma bela roupa de pano verde, larga e debruada de peles pretas. O flamengo recebeu o viajante com grande amabilidade e convidou-o para ficar em sua casa.
    Mal se sentaram para jantar o Cavaleiro espantou-se com o paladar da comida que estava temperada com especiarias para ele desconhecidas.
    O negociante riu-se, abanou a cabeça e disse:
    - Vê-se que conheces mal o mundo novo.
    Indignado com estas palavras o Cavaleiro começou a narrar a sua viagem.
    Quando ele terminou o flamengo disse:
    - Contaste uma bela história, mas daqui a pouco vai chegar alguém que te contará histórias muito mais espantosas.
    De facto, passado pouco tempo, bateram à porta da casa, ouviram-se passos na escada, e depois penetrou na sala um homem alto e forte, de aspecto rude, pele queimada pelo sol e andar baloiçado.
    -Este é um dos capitães dos meus navios – disse o negociante -. Voltou à dois dias duma viagem.
    O recém-chegado poisou em cima da mesa dois pequenos cofres e disse:
    - Aqui estão três amostras das mercadorias que trago.
    O primeiro cofre estava cheio de pequenas pérolas, o segundo cofre estava cheio de oiro e o terceiro cofre estava cheio de pimenta.
    Espantou-se o Cavaleiro com aquilo que via, pois naquele tempo a pimenta era quase tão rara como o oiro.
    O dono da casa pôs mais lenha na lareira, serviu vinho aos seus hóspedes, e os três homens sentaram-se em frente do lume.
    Então, a pedido do negociante, o capitão começou a falar das suas viagens. Contou como desde muito novo tinha seguido a carreira de marinheiro viajando por todos os portos da Europa desde o mar Báltico até ao Mediterrâneo. Mas era sobretudo entre a Flandres e os portos da Península Ibérica que viajava. Um dia, porém, teve desejo de ir mais longe, de ir até às terras desconhecidas que surgiam do mar. Então resolveu alistar-se nas expedições portuguesas que navegavam para o sul à procura de novos países. Veio a Lisboa e aí embarcou numa caravela que partia a reconhecer e a explorar as costas de África.
    Seguiram das margens do Tejo para as Canárias, onde pararam alguns dias. Depois continuaram viagem, aproximaram-se da terra africana, dobraram o cabo Bojador e seguiram, à vista das costas desertas, queimadas pelo sol, sem árvores, e sem homens. Junto ao cabo Branco ancoraram o navio num abrigo formado por altos penedos. Então os homens de pele sombria, envolvidos em mantos flutuantes e montados em camelos, vieram à orla da praia negociar com os portugueses. E as caravelas continuaram a navegar para o sul, muito para o sul. Uma brisa constante inchava as grandes velas e os mastros e os cabos gemiam docemente. Até que, para além das intermináveis costas nuas e vazias, sem árvores e sem sombra, surgiam as primeiras palmeiras. Depois começaram a aparecer espessas e verdes florestas que cobriam toda a terra desde as praias brancas até aos montes azulados. E dessas florestas surgiam homens nus e negros que embarcavam em pirogas e rodeavam os navios. Os marinheiros portugueses traziam ordem de se entenderem com eles. Mas isto era difícil. Em geral as pirogas não chegavam ao alcance dos navios e outras vezes mesmo os negros desapareciam entre o arvoredo mal as caravelas ancoravam. Então os marinheiros que desembarcaram eram recebidos com flechas envenenadas dos homens escondidos.
    Porém, havia paragens onde os africanos e os portugueses já se conheciam e negociavam. E às vezes, em lugares da costa onde nunca um navio tinha parado, acontecia serem acolhidos com festa e alvoroço. Então, bailando e cantando, os negros vinham ao encontro dos navegadores que, para corresponderem ao bom acolhimento, bailavam e dançavam também à moda da sua terra...”

    (CONTINUA)