terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Surrealismo

Jane Malek


Quero um amor em azul
que trascenda a forma,o tempo e o espaço;
onde a ternura do olhar ,nâo olhar se veja;
... onde a ternura do sorriso ,o riso ausente;
onde a ternura do gesto,nâo o gesto.

Quero um amor em azul,
que seja verso sem rima ,música sem pauta,
óleo sem tela,paisagem sem horizonte;
esteira de luz no rastro das estrelas;
a leveza do adejo do pássaro ,nâo pássaro.

Quero um amor em azul,
puro amor,ilimitado amor,
que supra a carência de pureza que hâ nas criaturas,
a fome de beleza,a sede de inocência
que dormem à espreita.E escutam.E aguardam.E chamam.

Quero um amor em azul
que rompa os vèus da dúvida,da incerteza
e busque rotas novas,nâo trilhadas.
Ascenda aos cèus ou desça às profundezas
sem delimitaciôes de certo e errado.

Quero um amor em azul,
puro amor,transcendental amor;
túnica esgarça,fluida,evanescente.
A alma nua ganhando mil distâncias
e se encontrando em outra alma nua.

Quero um amor em azul
que transcenda a forma,o tempo e o espaço.
Amor sem moldes,sem totem,sem compassos.
Puro amor,ilimitado amor,pólen sideral
perdendo-se no ventre das estrelas.
 

QUE HÁ PARA LÁ DO SONHAR?

VERGÍLIO FERREIRA, in CONTA CORRENTE I



Céu baixo, grosso, cinzento
... e uma luz vaga pelo ar
chama-me ao gosto de estar
reduzido ao fermento
do que em mim a levedar
é este estranho tormento
de me estar tudo a contento,
em todo o meu pensamento
ser pensar a dormitar.

Mas que há para lá do sonhar?

Mais uma vez de volta ao Algarve e às lindas amendoeiras em flor...



Outrora mais comuns, estas amendoeiras estão hoje condenadas à extinção, por terras do Algarve. Ninguém sabe ao certo quantas variedades antigas ainda existem hoje, mas de todas, as que produzem flor cor de rosa mais escuro, são certamente as que correm mais perigo de desaparecerem dos campos algarvios. Estas velhas árvores estão normalmente associadas a uma amêndoa que poucos conhecem fora desta região, e que, embora sendo conhecida, poucas pessoas as tinham antigamente.

A amêndoa-de-coco, ou ainda amêndoa molar, faz parte das variedades que produzem fruto de casca mole, sendo facilmente partida com os dentes ou dedos, mas uma das razões que fez com que, no passado, fosse pouco cultivada, era a sua fraca produção. Claro que estávamos num tempo em que se valorizavam os "frutos da terra" e a sua abundância, da qual dependia a sobrevivência das famílias.

As fotos foram tiradas num terreno onde há um projeto para um novo shopping, a ser construído em breve e, claro, será mais uma árvore a abater, pois como diria o "outro", é só mais uma amendoeira, e o Algarve tem ainda tantas.



Landscapes - oil paintings exhibition by Alex Perez contemporary realist artist

Paintings of Whidbey Island

SONETO 119

JOSÉ MARIA BARBOSA DU BOCAGE, in OBRA COMPLETA - Volume I - SONETOS



Da rama escura de letal cipreste
... Em sonhos vi c'roada a bela Armia;
Alvas, mimosas carnes lhe envolvia
Da negra Morte a lutuosa veste;

Vagueava o meu bem num ermo agreste,
Onde o mocho agoirento se carpia,
Não tão meiga e gentil como algum dia,
Mas inda conservava um ar celeste.

Esta que vês (me disse em tom magoado)
Que não creste mortal, mas divindade,
É sombra vã, fantasma inanimado.

Eis ferido de amor e de saudade,
Grito, acordo, e segui-se (Oh! duro Fado!)
À funesta visão fatal verdade.

MUSICA MIRABILIS

EUGÉNIO DE ANDRADE, in MAR DE SETEMBRO



Talvez a ternura
crepite no pulso,
talvez o vento
súbito se levante,
talvez a palavra
atinja o seu cume,
talvez um segredo
chegue ainda a tempo

- e desperte o lume.

Miguel Torga

 
 
Recomeça….
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
... Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…

PARA ATRAVESSAR CONTIGO O DESERTO DO MUNDO

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in LIVRO SEXTO



 Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

Se tu e eu...

JOSÉ SOTTOMAYOR

Se tu e eu
 pudessemos ser céu,
guardaria uma nuvem
... só para ti,

...se tu e eu
pudessemos ser amor,
guardaria um jardim
para te plantar,
flor.

Se tu e eu
pudessemos ser nós,
haveria um jardim
por baixo do céu,

uma voz,
acordando o sonho
meu e teu.

ANTÓNIO NOBRE, in POESIA COMPLETA 1867-1900



 Virgens que passais, ao Sol-poente,
Pelas estradas ermas, a cantar!
Eu quero ouvir uma canção ardente,
... Que me transporte ao meu perdido lar.

Cantai-me, nessa voz omnipotente,
O sol que tomba, aureolando o Mar
A fartura da seara reluzente,
O vinho, a graça, a formosura, o luar!

Cantai! Cantai as límpidas cantigas!
Das ruínas do meu lar desaterrai
Todas aquelas ilusões antigas

Que eu vi morrer num sonho, como um ai....
Ó suaves e frescas raparigas,
adormecei-me nessa voz...cantai !

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O POETA PEDE AO SEU AMOR QUE LHE ESCREVA

FEDERICO GARCIA LORCA (1898 - 1937)


  

 Amor de minhas entranhas, morte viva,
em vão espero tua palavra escrita
e penso, com a flor que se murcha,
que se vivo sem mim quero perder-te.

O ar é imortal. A pedra inerte
nem conhece a sombra nem a evita.
Coração interior não necessita
o mel gelado que a lua verte.

Porém eu te sofri. Rasguei-me as veias,
tigre e pomba, sobre tua cintura
em duelo de kordiscos e açucenas.

Enche, pois, de palavras minha loucura
ou deixa-me viver em minha serena
noite da alma para sempre escura.

SONETO DO CATIVO

DAVID MOURÃO-FERREIRA, in OS QUATRO CANTOS DO TEMPO 
 

 Se é sem dúvida Amor esta explosão
... de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias
tão longe da verdade e da invenção;

o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que outros dirão ou não dirão;

se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encantamento e de desprezo;

não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!

Maria Martha Serra Lima A mi manera pinturas de Vladimir Volegov.wmv

Vladimir Volegov.wmv

Busca


Busco na força dos ventos

a semente do furacão que assola,
faz tempo, minhas entranhas
e na chuva que brota macia
as raízes da tempestade;
águas que eu teimo e choro
toda a vez que sinto saudade.

Busco no silêncio que permeia a tarde,
a razão da inquietude que eu temo
e no veneno da mais insidiosa serpente,
o remédio para a dor de uma paixão,
gasturas herdadas de um tempo
de muita loucura e aguardente;
sangue, suor, solidão.

Busco nas madrugadas insones
o remédio pra dor que alucina,
nas ruas repletas de sonhos
a coragem dos poetas, dos tolos
e nos poemas que eu teimo e faço,
as chaves da minha redenção.

E ainda que nublada a cidade,
e ardida a verdade que ruge,
nada impedirá que eu me encontre,
pois cicatrizados os cortes que sangram
e convertidos os demônios que assombram;
escreverei num epitáfio a verdade:
ainda estou tão distante
                e muito tenho que aprender

PERCEPÇÃO SUBJECTIVA

FRANCISCO VALVERDE ARSÉNIO


Não sei que nome chamar-te.
Nem onde estão os passos
que quero sombra dos meus.

Talvez eu seja um livro cansado
de tanto me leres,
ou tão-pouco saibas
onde ficou o marcador de página
O eterno é tão efémero
que nem damos pelo presente…
há aromas que não ficam na pele.

Sonho que queres vir sem convite
onde sou frente e verso,
onde desenho na página par
um balão a insuflar
ao sabor da aragem
ou a primeira pétala
que cai na mudança de estação.

Não sei que nome chamar-te
quando te vejo entre os nenúfares
numa paisagem serena,
prostrada abraçando a árvore
que lança os ramos sobre as águas,
onde as nossas roupas
se transformam em leito de amor
e dançamos ao brilho das estrelas apaixonadas.

Não sei que nome chamar-te
quando levas o cálice aos lábios de cor carmim
e olhas o livro despojado de letras.

A DELICADA MAJESTADE

ANTÓNIO RAMOS ROSA, in ACORDES



Um dia poderás chegar, tu que nunca chegas
... porque não és um tu
ou porque chegas sempre em não chegares.
Subi um dia por uma escada silenciosa
e em torno era um pomar branco, tranquila maravilha
e eu senti, eu vi, adivinhei
a divindade amada, a soberana e delicada
majestade. Que suavidade de oriente,
que suave esplendor! Era o fulgor de um sono
límpido, entre olhos verdes, entre mãos verdes.
E num repouso de oiro adormecido era quase um rosto
Antiquíssimo e inicial. Contemplava
a quietude de um imenso nenúfar
e a fragância era quase visível como um mar entreaberto.
Era um rio detido ou uma tersa nuca ou um braço estendido
que descansa entre ribeiros primaveris
ou era antes a serena felicidade
e era uma boca da terra que não cantava que não dizia
o silêncio ardente que no peito de espuma cintilava.

A ABELHA QUE, VOANDO, FREME SOBRE


RICARDO REIS, in ODES DE RICARDO REIS. FERNANDO PESSOA.

...
A abelha que, voando, freme sobre
A colorida flor, e pousa, quase
Sem diferença dela
À vista que não olha,

Não mudou desde Cecrops. Só quem vive
Uma vida com ser que se conhece
Envelhece, distinto
Da espécie de que vive.

Ela é a mesma que outra que não ela.
Só nós — ó tempo, ó alma, ó vida, ó morte!—
Mortalmente compramos
Ter mais vida que a vida.

Cores de fim de janeiro, do inverno florido algarvio




Esboço do dia...

PERCEPÇÃO SUBJECTIVA

FRANCISCO VALVERDE ARSÉNIO



Não sei que nome chamar-te.
Nem onde estão os passos
que quero sombra dos meus.

Talvez eu seja um livro cansado
de tanto me leres,
ou tão-pouco saibas
onde ficou o marcador de página
O eterno é tão efémero
que nem damos pelo presente…
há aromas que não ficam na pele.

Sonho que queres vir sem convite
onde sou frente e verso,
onde desenho na página par
um balão a insuflar
ao sabor da aragem
ou a primeira pétala
que cai na mudança de estação.

Não sei que nome chamar-te
quando te vejo entre os nenúfares
numa paisagem serena,
prostrada abraçando a árvore
que lança os ramos sobre as águas,
onde as nossas roupas
se transformam em leito de amor
e dançamos ao brilho das estrelas apaixonadas.

Não sei que nome chamar-te
quando levas o cálice aos lábios de cor carmim
e olhas o livro despojado de letras.

A MULHER FELIZ

ANTÓNIO RAMOS ROSA, in VOLANTE VERDE




...
Está de pé sobre as brancas dunas. As ondas conduziram-na
e os ventos empurraram-na, está ali, na perfeição redonda
da oferenda. E como que adormece no esplendor sereno.
Diz luz porque diz agora e és tu e sou eu, num círculo
Só. Está embriagada de ar como uma forte lâmpada

É uma área de equilíbrio, de movimentos flexíveis,
um repouso incendiado, a vitória de uma pedra.
Abrem-se fundas águas e um novo fogo aparece.
Que lentas são as folhas largas e as areias!
Que denso é este corpo, esta lua de argila!

Nua como uma pedra ardente, mais do que uma promessa
fulgurante, a amorosa presença de uma mulher feliz.
Nela dormem os pássaros, dormem os nomes puros.
Agora crepita a noite, as línguas que circulam.
Crescem, crescem os músculos da mais intima distância.

domingo, 29 de janeiro de 2012

INOCÊNCIA

CLÁUDIO CORDEIRO, in UM TUDO NADA ÁGUA

  

A inocência do teu corpo é um pano branco.
... A carne é crua num corpo intacto de plena luz.
Nu e intenso é o teu olhar despido de fogo.
Estou sóbrio na noite em que murmuro o teu
nome puro.

Sei que a água não é o pão que como
no teu corpo virgem.
A tua inocência é o fruto delicado
que pressinto na ponta dos meus dedos.

Respiro lentamente a fome dos teus braços.
Sinto falta de beijar o sol da tua boca…

Em ti...

GONÇALO SALVADO, in ARDENTIA



Em ti o chão exausto de meu desejo. A flor aberta
dos sentidos. A calidez do lume. A água. O vinho.
O sangue a estuar em fúria. O grito do sol
que em transe de labareda fulge e irradia.
A extensão de tantos vales
e colinas. Fragrantes. Infinitas.
Os pomos saborosos, repartidos.
Os gomos. Os sumos ardorosos.
Os bosques impregnados de maresia.
A placidez molhada das ervas.
O luzir loiro das searas pelo vento devastadas.
O estio. O seu zénite. A sua vertigem.

Em ti a inclinação dos ramos. A translucidez do verde.
O derrame da seiva. O estremecer das raízes.
O musgo despontando. O aveludado dos troncos.
Os álamos. Os plátanos. E outras núbeis melodias.
O espreguiçar incandescente dos rios.
O êxtase das aves altas anunciando o fervor
de um beijo. De um afago. De uma carícia.
O hálito das corolas. As sépalas. Os estames.
O brilho e o odor silvestre da resina. A relva sedosa.
A primavera inebriada com sua própria brisa.

Em ti o menear da terra. As eiras. O feno flamante.
O irromper dos brotos. O despertar dos cálices.
A embriaguez do nardo. E da acácia, festiva.
O matiz das cores na várzea repercutido.
O som dos mananciais posto a descoberto.
O manar das fontes em euforia.
Os céus azuis a derramarem hinos.
O trinado agudo da andorinha.
O acenar obstinado dos choupos.
As centelhas rubras do crepúsculo.
O perfume juvenil das vinhas.

Em ti o delírio das ondas. Das espumas.
As fogueiras ateadas. Os aromas fulvos.
O sopro das chamas. O pão aceso. As espigas.
Os campos de lilases que se estendem
numa queimadura de aurora.
As pétalas humedecidas.
O incêndio azul do orvalho.
A alvura da açucena na manhã florida.

Em ti, amada, celebro a memória de todas as coisas vivas.

E EU NEM SEI BEM O PORQUÊ




Solitários caminhos, ruas, praças, jardins,
cidade dos sonhos, vento frio de outono.
Segredos talhados numa velha árvore.
Promessas, cumplicidade,
coisas que o tempo não apagou.

Já faz tanto tempo e eu nem sei o porquê,
continuo a passar por aqui.
Acho que a memória, às vezes falha,
faz com que eu perca o rumo,
me põe em desalinho, e cobra carinhos...
E eu confundo tudo, perco a noção dos anos
e penso que ainda há muito tempo...

Coração caminha sem deixar rastros,
e por onde ele passa colhe neblina,
noites friorentas, enredos mal escritos,
vivências entrelaçadas, emaranhados do destino,
porção e meia de desenganos...
eu nem sei o porquê, mas
continuo a passar por aqui.

Carlos de Haes

Childe Hassam paintings

Amor



Amor, amor, amor, como não amam
os que de amor o amor de amar não sabem,
como não amam se de amor não pensam
os que de amar o amor de amar não gozam.
Amor, amor, nenhum amor, nenhum
em vez do sempre amar que o gesto prende
o olhar ao corpo que perpassa amante
e não será de amor se outro não for
que novamente passe como amor que é novo.
Não se ama o que se tem nem se deseja
o que não temos nesse amor que amamos,
mas só amamos quando amamos o acto
em que de amor o amor de amar se cumpre.
Amor, amor, nem antes, nem depois,
amor que não possui, amor que não se dá,
amor que dura apenas sem palavras tudo
o que no sexo é sexo só por si amado.
Amor de amor de amar de amor tranquilamente
o oleoso repetir das carnes que se roçam
até ao instante em que paradas tremem
de ansioso terminar o amor que recomeça.
Amor, amor, amor, como não amam
os que de amar o amor de amar o amor não amam.

Jorge de Sena, Peregrinatio ad loca infecta (1969)

Nau Catrineta




Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito que contar!
Ouvide agora, senhores,
Uma história de pasmar.

Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar,
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar.

Deitaram sola de molho
Para o outro dia jantar;
Mas a sola era tão rija, 
Que a não puderam tragar.

Deitaram sortes à ventura
Qual se havia de matar;
Logo foi cair a sorte
No capitão general.

- "Sobe, sobe, marujinho,
  Àquele mastro real,
  Vê se vês terras de Espanha,
  As praias de Portugal!"

- "Não vejo terras de Espanha,
  Nem praias de Portugal;
  Vejo sete espadas nuas
  Que estão para te matar." 

- "Acima, acima, gageiro,
  Acima ao tope real!
  Olha se enxergas Espanha,
  Areias de Portugal!"

- "Alvíssaras, capitão,
  Meu capitão general!
  Já vejo terras de Espanha,
  Areias de Portugal!"
  Mais enxergo três meninas,
  Debaixo de um laranjal:
  Uma sentada a coser,
  Outra na roca a fiar,
  A mais formosa de todas
  Está no meio a chorar."

- "Todas três são minhas filhas,
  Oh! quem mas dera abraçar!
  A mais formosa de todas
  Contigo a hei-se casar."

- "A vossa filha não quero,
  Que vos custou a criar."

- "Dar-te-ei tanto dinheiro
  Que o não possas contar."

- "Não quero o vosso dinheiro
  Pois vos custou a ganhar."

- "Dou-te o meu cavalo branco,
  Que nunca houve outro igual."

- "Guardai o vosso cavalo,
  Que vos custou a ensinar."

- "Dar-te-ei a Catrineta,
  Para nela navegar."

- "Não quero a Nau Catrineta,
  Que a não sei governar."

- "Que queres tu, meu gageiro,
  Que alvíssaras te hei-de dar?"

- "Capitão, quero a tua alma,
  Para comigo a levar!"

- "Renego de ti, demónio,
  Que me estavas a tentar!
  A minha alma é só de Deus;
  O corpo dou eu ao mar."

Tomou-o um anjo nos braços,
Não no deixou afogar.
Deu um estouro o demónio,
Acalmaram vento e mar;

E à noite a Nau Catrineta
Estava em terra a varar.

Almeida Garrett, Romanceiro

O Teu Retrato

António Nobre

Deus fez a noite com o teu olhar,
Deus fez as ondas com os teus cabelos;
com a tua coragem fez castelos
Que pôs, como defesa, à beira-mar.

Com um sorriso teu, fez o luar
(Que é sorriso de noite, ao viandante)
E eu que andava pelo mundo, errante,
Já não ando perdido em alto mar!

Do céu de Portugal fez a tua alma!
E ao ver-te sempre assim, tão pura e calma,
Da minha noite, eu fiz a claridade!

Ó meu anjo de luz e de esperança,
Será em ti afinal que descansa
O triste fim da minha mocidade!

Esboço do dia...

SER OU NÃO SER, EIS A QUESTÃO

 
"Será mais nobre em espírito viver
Sofrendo os golpes e as frechadas da afrontosa sorte
 Ou armas tomar contra um mar de penas.
Dar-lhes um fim: morrer, dormir...
Só isso e, por tal sono, dizer que acabaram
Penas do coração e os milhões de c...hoques naturais
Herdados com a carne? Será final
A desejar ardentemente... Morrer, dormir;
Dormir, sonhar talvez... Mas há um contra,
Pois nesse mortal sonho outros podem vir,
Libertos já do mortal abraço da vida...
Deve ser um intervalo... É o respeito
Que de tal longa vida faz calamidade
Pois quem pode suportar do tempo azorrague e chufas,
Os erros do tirano, ultrajes do orgulho,
As angústias de amor desprezado, a lei tardia,
A insolência das repartições e o coice destinado
Pelos inúteis aos meritórios pacientes?
Para quê se pode aquietar-se, acomodar-se,
Com um simples punhal? Quem suportará,
Suando e resmungando,vida de fadigas
Senão quem teme o horror de qualquer coisa após a morte,
País desconhecido, a descobrir, cujas fronteiras
Não há quem volte a atravessar e nos intriga
E nos faz continuar a suportar os nossos males
Em vez de fugir para outros que desconhecemos?...
Assim a todos nos faz covardes nossa consciência,
Assim o grito natural do ânimo mais resoluto
Se afoga na pálida sombra do pensar
E as empresas de mor peso e alto fim,
Tal vendo mudam o seu rumor errando
E nada conseguindo! Sossega agora...
Ofélia gentil? Ninfa, em tuas orações
Sejam sempre lembrados meus pecados."

Tradução de José Blanc de Portugal,
Editorial Presença, 3ª. ed., 1997)

SER OU NÃO SER, EIS A QUESTÃO
WIILLIAM SHAKESPEARE
(1564-1613)

A CADA UM DOS MEUS DEDOS

TIAGO PATRÍCIO, in O LIVRO DAS AVES



A cada um dos meus dedos
contei o princípio do teu nome
soletrei a tua língua de areia
e os anéis da tua pele

A caminho dos teus pés
ponderei as razões das caravanas
e do vento que sobe ao teu vestido
Nas tuas pernas de veias túmidas de hena
há filigranas de paisagens
e tripulantes escuros de plumas azuis

A tua pele curtida é argamassa de gerações
de mulheres migratórias
de ruínas e linho intumescido no seio

Os teu cabelos abrem o tempo
e lembram rotas da seda e dromedários
rendas, cortinas e o frio do deserto
entre os corpos súbitos
E no teu leito repousam 15 mil homens
sucessivos e a concepção das raças

Há barcos que repousaram no teu oásis ondulante
com mastros e velas soberbas à tua passagem
peixes que te reconhecem do outro lado do mar
como na enseada do teu ventre

Recuperas das viagens e das cidades prometidas
do teu corpo inscrito no cansaço, nas pedras de sal
dos teus olhos, onde a sombra das colinas ao perto
revela ainda erupções e apelos de humidade

Os teus filhos númidas, púnicos e berberes
têm do rosto a recordação da disputa
e dos teus braços brancos as mãos ásperas
que são todas as noites um voo sentido
antes do acontecimento ao teu corpo

[CAI A CHUVA ABANDONADA]


VERGÍLIO FERREIRA, in CONTA CORRENTE

...
Cai a chuva abandonada
à minha melancolia,
a melancolia do nada
que é tudo o que em nós se cria.

Memória estranha de outrora
não a sei e está presente.
Em mim por si se demora
e nada em mim a consente

do que me fala à razão.
Mas a razão é limite
do que tem ocasião

de negar o que me fite
de onde é a minha mansão
que é mansão no sem-limite.
Ao longe e ao alto é que estou
e só daí é que sou.

José Agostinho de Macedo – I

        



José Agostinho de Macedo (11/09/1761 - 02/10/1831), natural de Beja, faleceu em Lisboa, onde tinha professado, em 1778, na Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, à Graça. Dado o seu espírito ainda jovem e irrequieto, nada adequado às normas da Ordem, e, ainda por cima, acusado e condenado pela justiça como autor de várias acções criminosas, como ladrão e frequentador de locais de prostituição - suspeições ainda por averiguar convenientemente, para que a verdade histórica seja reposta com justiça - foi expulso quatro anos depois, considerando-o, os seus superiores, contumaz e incorrigível. Dispensado dos votos monásticos, torna-se um pregador notável para o seu tempo. Membro da Nova Arcádia, inimigo da Revolução Francesa (1789), portanto dos jacobinos, integrou mais tarde a Arcádia de Roma adoptando o pseudónimo de Elmiro Tangideu. Escreveu bastante, sobrepondo-se, na sua vasta obra, os textos políticos, defensores do regime absolutista contra os liberais, e a poesia épica, no “género” da dos Lusíadas. Bocage e Almeida Garrett foram alvo da sua natureza polémica e permanentemente descontente.

O historiador e político Oliveira Martins (1845-1894), na sua obra “Perfis”, de 1886 (editada postumamente em 1930), teceu algumas considerações importantes sobre a vida e a obra do incompreendido “foliculário, […] fundador entre nós do jornalismo político, com o Desengano, com a Tripa Virada e com a Besta Esfolada, de que chegavam a tirar-se quatro mil exemplares! […] Os tempos tormentosos da passagem dos séculos XVIII para o XIX, com o esboroar de todas as coisas, desequilibraram o pensamento e o carácter desse homem poderoso, cuja força se perdeu num dilúvio de vulgaridades, numa indigesta montanha de folhetos, de jornais, de sermões, de cartas, de poemas e de versalhada, medíocre, mas espantosa, pela quantidade – um Himalaia, de calhaus rolados! […] Elmiro, com a batina desabotoada, as ventas largas cheias de rapé, abordoado a uma bengala, membrudo, violento, ossudo, desbragado, dava murros no balcão gorduroso dos Bertrands, ao Chiado, enchendo Lisboa com o estrépito das suas polémicas e com a fama da sua vida airada.

Andava amancebado com uma freira de Odivelas; passava as noites em arruaças e bebedeiras. Acusavam-no de ter furtado livros da livraria dos Paulistas, o que provavelmente era calúnia.

Fabricava poemas: O Oriente, o Gama, A Meditação, Newton, A Natureza, para não falar nos Burros, traduzindo numa linguagem friamente convencional, sem génio, sem colorido, as sensaborias banais do racionalismo naturalista do tempo. Fazia comédias, pregava sermões. Ensaiava o drama burguês moderno, inventado por Diderot, com a Clotilde e o Vício sem Máscara, e alinhavava dissertações filosóficas. A sua veia porém, a sua vocação, era a polémica. Inventou o jornal, nacionalizou o panfleto. Foi o mestre de S. Boaventura, autor do Mastigóforo, e de Alvito Buela, o autor do Cacete.”

Oliveira Martins finaliza o perfil de José Agostinho de Macedo defendendo a razão de ser do seu carácter tão singular do seguinte modo: ” apesar da sua banalidade, da sua monstruosidade cínica, apesar de tudo, foi Alguém. O povo amou-o, sentiu pelos seus nervos, falou pela sua boca. Porquê? Em primeiro lugar, porque o povo português, enervado por três séculos de decomposição, estava retratado na figura do padre. A força que ainda tinha esvaía-se toda em pedir arrocho, e em arrastar os cacetes apostólicos pelas portarias dos conventos e pelas vielas imundas das marafonas, cambaleando ébrio de cólera, e também de vinho frequentemente. Mas, em segundo lugar, a razão é outra. Dois homens podem entender-se para praticar uma traficância; muitos, é difícil – todos, nunca. Um povo pode ser cínico, mas não pode ser patife. Há sentimentos exclusivamente individuais, e a patifaria é um desses. Se um povo pratica acções criminosas, é porque perdeu a consciência do que seja crime. O povo é sempre sincero.

A sinceridade, eis aí o segredo de José Agostinho; a franqueza foi a sua força; o desinteresse, a origem do seu prestígio. O cinismo desbragado, isto é, a sinceridade e a franqueza levadas até à impudência, com aquele desaforo dos que, não tendo vergonha têm o mundo por si, foram a nota dominante e a faculdade íntima do polemista que se achou desse modo num perfeito acordo com o povo. Plebeu, sem perfídias de civilizado, rústico, sem ambages de político, foi um arrieiro das letras, é verdade, mas não foi um chatim.

Cobiçava a fama, cobiçava a popularidade mais vulgar; mas não cobiçava o dinheiro, ídolo exclusivo dos dias de hoje [Oliveira Martins dizia isto no final do século XIX e, hoje, ultrapassado o século XX, o dinheiro não continua a ser o mote da canção de embalar dos políticos e dos oportunistas?] . Viveu sempre quase mendigo. As letras e o púlpito davam-lhe apenas para não morrer de fome. Era, a valer, o tipo do demagogo antigo ao lado de D. Miguel que reproduzia a imagem dos velhos tiranos lacedemónios do Peloponeso ou da Sicília. Além disso, levava sobre os dias de hoje e sobre os nossos foliculários outra vantagem: as suas verrinas não eram postiças, convencionais. Havia ódios, o que não deixa de ser um bem quando há antagonismos fundamentados. A imprensa não era ainda uma comédia representada para ilusão da galeria. Quando se jogavam injúrias, arriscavam-se facadas e tiros. Era sério. Finalmente, havia uma outra vantagem, se comparamos a Besta esfolada às Tripas viradas dos dias de hoje: é que as injúrias inflamantes, os insultos obscenos, as verrinas descompostas, dirigiam-se a um partido odiado que, de resto, pagava na mesma moeda, em vez de se dirigirem como hoje, que tudo são questões de pessoas, a fulano ou sicrano, portadores, quando muito, de uma individualidade incómoda ou de um interesse cúpido.

Estudando comparadamente o jornalismo português com meio século de intervalo, vemos que a tradição de José Agostinho se mantém nuns pontos e se oblitera em outros. Oxalá seja para melhor!”

Nas suas “Cartas filosóficas a Attico” (edição da Impressão Regia de Lisboa, de 1815), Macedo desenvolve, entre muitos outros temas de carácter militar, político, social, religioso, cultural e económico, o tema do provincianismo segundo a sua vertente do patriotismo. Tudo para impressionar uma das suas novas paixões, uma freira Trina… a dado passo, até julgamos que se refere a uma religiosa portuguesa, provinciana, também de Beja, que tem dado que falar. Ilusões do gosto e do nosso ofício, sem dúvida.

Leonel Borrela

COMPLETAS

MANUEL ANTÓNIO PINA, in ALGO PARECIDO COM ISTO, DA MESMA SUBSTÂNCIA


...
A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.

E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.

Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos domónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.

Wind Butterflies

Gary Benfield Art Collection

ALMA EN EL ARTE

AO FUNDO DAS HORAS

VITOR MATOS, in "Separata da Mensagem" Moçambique



Grande é a noite dentro dos olhos
que o sono e a paz não vêm fechar.

Perguntam as coisas dos cantos da noite
quem somos assim que nome nem temos;

e é aos silêncios, às estátuas, às portas fechadas
que, solitários e nus, pertencemos.

NÃO É O CORAÇÂO

ANA MARIA GASTÃO, in NOCTURNOS



...
Não é o coração
mas esta carne
em seu rumor.


Não é o coração
mas teu silêncio
de intenso furor.


Não é o coração
mas as mãos
sem corpo, vazias.
Na grave melodia
de um instante
tu e eu
em desequilíbrio
na infame
consistência
de um absoluto
obstáculo.

RICHARD CLAYDERMAN - Passion

sábado, 28 de janeiro de 2012

Stormy Weather / Paintings- Leonid Afremov

DEPOIS DAQUELAS PEDRAS



Depois daquelas pedras existe uma passagem
e só quem por ela penetra
percebe importantes e delicados detalhes:
luz da lua por janela entreaberta,
samambaia chorona cochichando com as avencas,
monsenhor apaixonado por bromélias,
renda portuguesa discretíssima, só observa;
borboleta pousada no meu ombro esquerdo
busca uma chance de revelar seus segredos,
palavras que sorriem quando ditas em versos,
cata vento que venta ao contrário
e traz cheiro de mato pra dentro do quarto,
portas e gavetas abertas, escancarado o armário,
colibris que escrevem poemas...
Hoje, em meu jardim já são dezesseis!

Madrugada que avisa que o dia que chega
vai ser de preguiça, chuva fina e aconchego,
mulher amada aninhada em cobertas,
pernas entrelaçadas com as minhas embriagadas;
essência de alfazema espalhada pelo quarto;
dragão tatuado que solta fogo pelas ventas
e aquece o ambiente, dias frios de inverno,
café quente e encorpado, e ainda quero um cigarro!

Detalhes, pequenos pecados, prazeres confessos,
segredos revelados, sonhar acordado,
seus olhos bordados a tecer muitas teias;
e tem também o conhaque, e o vinho tinto e encorpado,
e algazarra de pássaros na janela da sala...
Passarada danada se expulso de lá, me invadem o quarto!

Depois daquelas pedras existe uma passagem
e só quem nela acredita consegue com o tempo,
viver no mundo de dentro sem abrir mão da vida lá fora.

"Na serenidade dos rios que enlouquecem"



Podia dizer-te hoje, que nunca te deixei.
Por nenhum momento.
Ouvia-te chorar dentro de ti. E as tuas lágrimas inundavam as planícies, negras e acidentadas, do meu corpo pela erosão dos teus dias.
Já não tenho lugar no silêncio onde moram as gaivotas, nem na tua pele, onde dantes, desenhava constelações.
Já não deixamos as roupas debaixo dos luares dos nossos corpos, nem sentimos o galopar dos nossos corações,  por entre bosques e lábios de silêncio.

Leonid Afremov

Flamenco-(Fabian Perez, DiDuLa)

Kenny G & Fabian Perez ♫

NASCE O VERSO!.

FRANCISCO VALVERDE ARSÉNIO



Coloco a cabeça
... entre as mãos
enquanto esta fervilha;
Um rio corre entre margens!

Dentro de mim
nasce um verso
ou palavras largadas sem forma.

Largadas no poema
que vai ficando por escrever.

Perco-me na imaginação
e no rumo,
e há um cheiro
a terra lambida pelo sol;

Olho-me…
e tenho asas prateadas como os meus cabelos.

Estou longe aqui em mim;
e tu aí…
voando pelo meu quarto.

"A poesia é uma das raras actividades humanas que, no tempo actual, tentam salvar uma certa espiritualidade.
A poesia não é uma espécie de religião, mas não há poeta, crente ou descrente, que não escreva para a salvação da sua alma - quer essa alma se chame amor, liberdade, dignidade ou beleza."

Sophia de Mello Breyner Andresen

SCIENCE

JOSÉ SARAMAGO, in OS POEMAS POSSÍVEIS



Talvez o nosso mundo se convexe
... Na matriz positiva doutra esfera.

Talvez no interspaço que medeia
Se permutem secretas migrações.

Talvez a cotovia, quando sobe,
Outros ninhos procure, ou outro sol.

Talvez a cerva branca do meu sonho
Do côncavo rebanho se perdesse.

Talvez do eco dum distante canto
Nascesse a poesia que fazemos.

Talvez só amor seja o que temos,
Talvez a nossa coroa, o nosso manto.