quinta-feira, 21 de junho de 2012

MANHÃ


MÁRIO DOMINGOS, in O DESPERTAR DOS VERBOS



Esta é a manhã. A manhã oval,
estratificada, 
a manhã em que as águas são claras:
a manhã.
Sei o que me percorre e contudo
ignoro-me.
Bom dia! O espaço é este, e é esta a luz:
a manhã das cidades submersas em si,
na calma assustadora dos comboios distantes,
das cidades alagadas de espanto,
das estrelas cadentes despercebidas.
A escrita consequente, oh, a escrita consequente,
o pensamento errante em mim, 
o rosto reticente dos rios…
Somos as paredes das nossas próprias casas,
o tecto e o chão, o canto apesar de tudo apetecido.
Como dizê-lo?
Sentimos o dilúvio, a graça matinal dos corpos,
sobretudo a silhueta inquietante das coisas habituais.
O inesperado é, de certo modo, a nossa maneira de ser,
se somos.
E somos quando recordamos os canais
vagamente navegáveis, movimentados
em todo o caso. Vagabundos, vagabundeamos.
Seja. A ave impenetrável que nos bate
à janela das costas,
o cheiro nítido a mar, o cimento
das grandes construções,
os parâmetros secretíssimos em que nos movemos,
em que nos comovemos: - Bom dia! Eis a manhã.

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