José Agostinho de Macedo (11/09/1761 - 02/10/1831), natural de Beja, faleceu em Lisboa, onde tinha professado, em 1778, na Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, à Graça. Dado o seu espírito ainda jovem e irrequieto, nada adequado às normas da Ordem, e, ainda por cima, acusado e condenado pela justiça como autor de várias acções criminosas, como ladrão e frequentador de locais de prostituição - suspeições ainda por averiguar convenientemente, para que a verdade histórica seja reposta com justiça - foi expulso quatro anos depois, considerando-o, os seus superiores, contumaz e incorrigível. Dispensado dos votos monásticos, torna-se um pregador notável para o seu tempo. Membro da Nova Arcádia, inimigo da Revolução Francesa (1789), portanto dos jacobinos, integrou mais tarde a Arcádia de Roma adoptando o pseudónimo de Elmiro Tangideu. Escreveu bastante, sobrepondo-se, na sua vasta obra, os textos políticos, defensores do regime absolutista contra os liberais, e a poesia épica, no “género” da dos Lusíadas. Bocage e Almeida Garrett foram alvo da sua natureza polémica e permanentemente descontente.
O historiador e político Oliveira Martins (1845-1894), na sua obra “Perfis”, de 1886 (editada postumamente em 1930), teceu algumas considerações importantes sobre a vida e a obra do incompreendido “foliculário, […] fundador entre nós do jornalismo político, com o Desengano, com a Tripa Virada e com a Besta Esfolada, de que chegavam a tirar-se quatro mil exemplares! […] Os tempos tormentosos da passagem dos séculos XVIII para o XIX, com o esboroar de todas as coisas, desequilibraram o pensamento e o carácter desse homem poderoso, cuja força se perdeu num dilúvio de vulgaridades, numa indigesta montanha de folhetos, de jornais, de sermões, de cartas, de poemas e de versalhada, medíocre, mas espantosa, pela quantidade – um Himalaia, de calhaus rolados! […] Elmiro, com a batina desabotoada, as ventas largas cheias de rapé, abordoado a uma bengala, membrudo, violento, ossudo, desbragado, dava murros no balcão gorduroso dos Bertrands, ao Chiado, enchendo Lisboa com o estrépito das suas polémicas e com a fama da sua vida airada.
Andava amancebado com uma freira de Odivelas; passava as noites em arruaças e bebedeiras. Acusavam-no de ter furtado livros da livraria dos Paulistas, o que provavelmente era calúnia.
Fabricava poemas: O Oriente, o Gama, A Meditação, Newton, A Natureza, para não falar nos Burros, traduzindo numa linguagem friamente convencional, sem génio, sem colorido, as sensaborias banais do racionalismo naturalista do tempo. Fazia comédias, pregava sermões. Ensaiava o drama burguês moderno, inventado por Diderot, com a Clotilde e o Vício sem Máscara, e alinhavava dissertações filosóficas. A sua veia porém, a sua vocação, era a polémica. Inventou o jornal, nacionalizou o panfleto. Foi o mestre de S. Boaventura, autor do Mastigóforo, e de Alvito Buela, o autor do Cacete.”
Oliveira Martins finaliza o perfil de José Agostinho de Macedo defendendo a razão de ser do seu carácter tão singular do seguinte modo: ” apesar da sua banalidade, da sua monstruosidade cínica, apesar de tudo, foi Alguém. O povo amou-o, sentiu pelos seus nervos, falou pela sua boca. Porquê? Em primeiro lugar, porque o povo português, enervado por três séculos de decomposição, estava retratado na figura do padre. A força que ainda tinha esvaía-se toda em pedir arrocho, e em arrastar os cacetes apostólicos pelas portarias dos conventos e pelas vielas imundas das marafonas, cambaleando ébrio de cólera, e também de vinho frequentemente. Mas, em segundo lugar, a razão é outra. Dois homens podem entender-se para praticar uma traficância; muitos, é difícil – todos, nunca. Um povo pode ser cínico, mas não pode ser patife. Há sentimentos exclusivamente individuais, e a patifaria é um desses. Se um povo pratica acções criminosas, é porque perdeu a consciência do que seja crime. O povo é sempre sincero.
A sinceridade, eis aí o segredo de José Agostinho; a franqueza foi a sua força; o desinteresse, a origem do seu prestígio. O cinismo desbragado, isto é, a sinceridade e a franqueza levadas até à impudência, com aquele desaforo dos que, não tendo vergonha têm o mundo por si, foram a nota dominante e a faculdade íntima do polemista que se achou desse modo num perfeito acordo com o povo. Plebeu, sem perfídias de civilizado, rústico, sem ambages de político, foi um arrieiro das letras, é verdade, mas não foi um chatim.
Cobiçava a fama, cobiçava a popularidade mais vulgar; mas não cobiçava o dinheiro, ídolo exclusivo dos dias de hoje [Oliveira Martins dizia isto no final do século XIX e, hoje, ultrapassado o século XX, o dinheiro não continua a ser o mote da canção de embalar dos políticos e dos oportunistas?] . Viveu sempre quase mendigo. As letras e o púlpito davam-lhe apenas para não morrer de fome. Era, a valer, o tipo do demagogo antigo ao lado de D. Miguel que reproduzia a imagem dos velhos tiranos lacedemónios do Peloponeso ou da Sicília. Além disso, levava sobre os dias de hoje e sobre os nossos foliculários outra vantagem: as suas verrinas não eram postiças, convencionais. Havia ódios, o que não deixa de ser um bem quando há antagonismos fundamentados. A imprensa não era ainda uma comédia representada para ilusão da galeria. Quando se jogavam injúrias, arriscavam-se facadas e tiros. Era sério. Finalmente, havia uma outra vantagem, se comparamos a Besta esfolada às Tripas viradas dos dias de hoje: é que as injúrias inflamantes, os insultos obscenos, as verrinas descompostas, dirigiam-se a um partido odiado que, de resto, pagava na mesma moeda, em vez de se dirigirem como hoje, que tudo são questões de pessoas, a fulano ou sicrano, portadores, quando muito, de uma individualidade incómoda ou de um interesse cúpido.
Estudando comparadamente o jornalismo português com meio século de intervalo, vemos que a tradição de José Agostinho se mantém nuns pontos e se oblitera em outros. Oxalá seja para melhor!”
Nas suas “Cartas filosóficas a Attico” (edição da Impressão Regia de Lisboa, de 1815), Macedo desenvolve, entre muitos outros temas de carácter militar, político, social, religioso, cultural e económico, o tema do provincianismo segundo a sua vertente do patriotismo. Tudo para impressionar uma das suas novas paixões, uma freira Trina… a dado passo, até julgamos que se refere a uma religiosa portuguesa, provinciana, também de Beja, que tem dado que falar. Ilusões do gosto e do nosso ofício, sem dúvida.
Leonel Borrela
Obrigado Maria Luisa, pela partilha do meu blogue sobre Mariana Alcoforado e as lettres portugaises. Bem haja, LB
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