domingo, 29 de janeiro de 2012

Nau Catrineta




Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito que contar!
Ouvide agora, senhores,
Uma história de pasmar.

Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar,
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar.

Deitaram sola de molho
Para o outro dia jantar;
Mas a sola era tão rija, 
Que a não puderam tragar.

Deitaram sortes à ventura
Qual se havia de matar;
Logo foi cair a sorte
No capitão general.

- "Sobe, sobe, marujinho,
  Àquele mastro real,
  Vê se vês terras de Espanha,
  As praias de Portugal!"

- "Não vejo terras de Espanha,
  Nem praias de Portugal;
  Vejo sete espadas nuas
  Que estão para te matar." 

- "Acima, acima, gageiro,
  Acima ao tope real!
  Olha se enxergas Espanha,
  Areias de Portugal!"

- "Alvíssaras, capitão,
  Meu capitão general!
  Já vejo terras de Espanha,
  Areias de Portugal!"
  Mais enxergo três meninas,
  Debaixo de um laranjal:
  Uma sentada a coser,
  Outra na roca a fiar,
  A mais formosa de todas
  Está no meio a chorar."

- "Todas três são minhas filhas,
  Oh! quem mas dera abraçar!
  A mais formosa de todas
  Contigo a hei-se casar."

- "A vossa filha não quero,
  Que vos custou a criar."

- "Dar-te-ei tanto dinheiro
  Que o não possas contar."

- "Não quero o vosso dinheiro
  Pois vos custou a ganhar."

- "Dou-te o meu cavalo branco,
  Que nunca houve outro igual."

- "Guardai o vosso cavalo,
  Que vos custou a ensinar."

- "Dar-te-ei a Catrineta,
  Para nela navegar."

- "Não quero a Nau Catrineta,
  Que a não sei governar."

- "Que queres tu, meu gageiro,
  Que alvíssaras te hei-de dar?"

- "Capitão, quero a tua alma,
  Para comigo a levar!"

- "Renego de ti, demónio,
  Que me estavas a tentar!
  A minha alma é só de Deus;
  O corpo dou eu ao mar."

Tomou-o um anjo nos braços,
Não no deixou afogar.
Deu um estouro o demónio,
Acalmaram vento e mar;

E à noite a Nau Catrineta
Estava em terra a varar.

Almeida Garrett, Romanceiro

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