Sophia de Mello Breyner Andresen
O olhar procura reunir um mundo que foi
destroçado pelas fúrias.
Pequenas cidades: muros caiados e recaiados para
manter intacto o alvoroço do início.
Ruas metade ao sol metade à sombra.
Janelas com as portadas azuis fechadas: violento
azul sem nenhum rosto.
Lugares despovoados, labirinto deserto: ausência
intensa como o arfar de um toiro.
Exterior exposto ao sol, senhor dos muros dos
pátios dos terraços.
Obscuros interiores rente à claridade, secretos e
atentos: silêncio vigiando
o clamor do sol sobre as pedras da calçada.
Diz-se que para quem um segredo não nos devore é
preciso dizê-lo em voz alta no sol de um terraço
ou de um pátio.
Essa é a missão do poeta: trazer para a luz e para
o exterior o medo.
Muros sem nenhum rosto morados por densas
ausências.
Não o homem mas os sinais do homem, a sua arte,
os seus hábitos, o seu violento azul, o espesso
amarelo, a veemência da cal.
Muro de taipa que devagar se esboroa — tinta que
se despinta — porta aberta para o pátio de chão
verde: soleira do quotidiano onde a roupa seca e
espaço de teatro. Mas também pórtico solene aberto
para a vida sagrada do homem.
Muro branco que se descaia e azula irisado de
manchas nebulosas e sonhadoras.
A porta desenha a sua forma perfeita à medida do
homem: as cores do cortinado de fitas contam a
nostalgia de uma festa.
Lá dentro a penumbra é fresca e vagarosa.
Nenhum rosto, nenhum vulto.
As marcas do homem contando a história do
homem.
No promontório o muro nada fecha ou cerca.
Longo muro branco entre a sombra do rochedo e
as lâmpadas das águas.
No quadrado aberto da janela o mar cintila coberto
de escamas e brilhos como na infância.
O mar ergue o seu radioso sorris de estátua arcaica.
Toda a luz se azula.
Reconhecemos nossa inata alegria: a evidência do
lugar sagrado
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