quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A pesca do Atum no Algarve

Antes de mais, importa esclarecer que há dois tipos de atuns com muito interesse económico e que frequentam as águas atlânticas. Em primeiro lugar, o atum pertence ao género dos acantópteros e à família dos escombrídeos, sendo a espécie mais vulgar (Thymus thymus), cujos melhores exemplares podem atingir dois metros de comprimento e novecentos quilos de peso, que se vêem em grupos de duas ou três dezenas nas águas quentes do Atlântico e do Mediterrâneo, que quase nunca passam do Golfo da Gasconha ou de Biscaia. Em segundo lugar a espécie mais pequena (Thymus brachyterus), que é a mais abundante do Mediterrâneo. Ambas são capturadas nas artes de cerco do atum lançadas nas praias Algarve e da Andaluzia. Para além do interesses alimentar dos tunídeos, também deles se aproveitava um óleo muito rico em gorduras e vitaminas hiposolúveis aplicados na indústria de medicamentos e até da cosmética.
O atum é um peixe migratório que na primavera inicia uma rota desde o Atlântico até ao Mediterrâneo, culminando no Mar Negro, tendo como única passagem o estreito de Gibraltar. Como o atum é bastante tímido e assustadiço ao ver as negras redes de pesca eriçadas, impermeabilizadas em alcatrão, numa estrutura fixa por âncoras e bóias que mais parecia um dédalo de corredores ou de ladrilhadas muralhas medievais, afastava-se para um canal que o conduzia até ao “copo”, uma espécie de armadilha de onde não podia sair senão fisgado na ponta do arpéu dos pescadores, debruçados sobre as redes numa luta desigual entre a força e o engenho, à qual eufemisticamente chamaram a “tourada do mar”, mas que não passava dum verdadeiro ritual de sangue.

As migrações dos tunídeos são profundamente sensíveis à corrente marítima do gulf-stream, que se inicia no golfo do México e formando uma diagonal atravessa o Atlântico em direcção à costa europeia, influenciando claramente o clima e as pescas marítimas. Essa corrente forma nas águas diferentes camadas de temperatura e até de salinidade, mantendo-se ao lado das outras correntes sem se misturarem. Até há ao início do século passado desconhecia-se o princípio da imiscibilidade das águas marítimas, razão pela qual se alteram os recursos marinhos e as capturas pesqueiras, sendo disso sensíveis os cardumes de sardinha e as migrações do atum. No verão as correntes quentes do golfo progridem pelo hemisfério norte e retrocedem no hemisfério sul, invertendo-se a situação no inverno. Por isso é que as pescarias são mais abundantes nos finais da primavera e princípios do verão. Na costa portuguesa, e sobretudo nas praias algarvias, a corrente equatorial chega no mês de Maio, atingindo o golfo da Gasconha no mês seguinte. É neste período que chega o atum, chamado de “direito”, quando as águas atlânticas atingem uma temperatura superior a 14.º.
As espécies piscatórias, com interesse económico e transformação industrial, dependem das correntes marítimas, da latitude solar e da sua constituição biológica. Assim, o atum, a cavala, a sardinha e a anchova abundam nas águas quentes da costa europeia do sul, enquanto o arenque e o bacalhau preferem as águas frias do norte. Logo, economia das pescas no continente europeu distribuiu-se pela abundância do pescado, ou seja, pela distribuição das correntes do golfo.

As armações lançadas no Algarve eram verdadeiras obras de engenharia náutica, bastante onerosas, constituídas por quilómetros de redes, centenas de âncoras e milhares de bóias, dando trabalho e pão a inúmeras famílias de pescadores. A tradição desta pesca passava de pais para filhos. Conforme o regime dos ventos oscilava também a limpidez das águas, sendo tanto mais proveitosa quando mais cristalinas fossem as águas. E isto porque o atum, embora bastante corpulento era muito assustadiço preferindo marginar as redes em vez de investir contra elas, sendo por isso imprescindível que as visse, razão pela qual as águas teriam de estar límpidas. Caso contrário esbarravam na armação danificando a sua estrutura, mercê da confusão que a partir dali se estabelecia no grupo de tunídeos. Pior do que isso seria a entrada do roaz na armação, expressão que o povo consagrou como sinónimo de grande confusão ou de violenta perturbação da ordem. O roaz é um pequeno cetáceo de apenas 1,5 metros de comprimento, bastante voraz, que persegue os atuns para num golpe de agilidade e força lhes arrancar o fígado, muito rico em gorduras. Um cardume de atuns, perante o ataque do roaz, é capaz de investir contra a armação e infligir-lhe danos irreparáveis. A presença do roaz na costa algarvia poderia significar a perda de um ano de trabalho. Por isso existiam barcos avançados à armação, como se fossem vigias para afugentar os roazes.
As armações de pesca do atum achavam-se espalhadas por toda a costa do Algarve, pertencentes a grandes empresários ou a sociedades de investidores. Sabe-se que pelo menos em 1797 fainava nestas águas a Companhia de Pescarias do Algarve, fundada anos antes pelo Marquês de Pombal.
Restringindo-nos apenas às que se armavam na costa de Faro, ficamos a saber que a Armação do Ramalhete foi lançada pela primeira vez em 1863 sob o patrocínio financeiro de João da Fonseca, de Joaquim António da Fonseca (que eram avô e tio do entrevistado), de António Coelho de Carvalho e de Sebastião José de Carvalho. Dois anos depois o irmão destes, Ventura Coelho de Carvalho, lançou a armação do Cabo de Santa Maria, que antes se designava por Zimbral. Em 1899 fundiram-se as duas armações numa sociedade anónima sob a designação de Companhia de Pesca de Atum do cabo de Santa Maria e Ramalhete.
Nessa altura existia também a armação do Forte que pertencera a Paulo Leite e fora adquirida anos pela Companhia Louletano-Silvense. Ao que parece, certas rivalidades e desentendimentos nos espaços das concessões levou a que a armação do Forte fosse comprada em 1916 pela Companhia do cabo e Ramalhete.

Durante alguns anos foram as três armações lançadas nas imediações da costa de Faro, mas em meados dos anos vinte do séc. XX deixou de lançar a do Forte, cingindo-se a companhia às armações que lhe davam o nome e a origem de constituição. A razão desta diminuição de esforços prendia-se com o decréscimo gradual das pescas desde 1900 até 1924, ano em que começaram novamente a aumentar os índices de capturas de atuns, atuarros e albacoras. Aliás essa diminuição foi tão sentida que provocou a falência de muitas empresas e a extinção de várias armações, nomeadamente a da Fuzeta (mais tarde denominada Bias), a da Barra Nova, Torre Alta, Torre Altinha, Carvoeiro, Senhora da Rocha, Belixe, Burgau, Almadena, etc.
Felizmente manteve-se em laboração a mais antiga das armações de pesca do Algarve, denominada Medo das Cascas, que se lançava na costa de Tavira de direito e de revés, a qual concorria em prestígio e produção com a Companhia de Pesca de Atum do Cabo de Santa Maria e Ramalhete. A título de curiosidade acrescentaremos que a armação do Ramalhete integrou-se naquela Companhia em 1899, tendo nesse ano pescado 2606 atuns, enquanto que a do Cabo de St.ª Maria pescava 4358 tunídeos. A partir de então o melhor ano da armação do Ramalhete foi 1927 com 5429 atuns, sendo 1918o pior ano com apenas 39 tunídeos. A armação do Cabo teve em 1907 o seu melhor ano com 4827 atuns, sendo o pior também o de 1918 com apenas 127 atuns.
Em todo o caso estas armações laboraram muitos anos antes de se integrarem naquela companhia, sob a égide dos irmãos Fonseca e de Coelho de Carvalho, empresários de grande notoriedade e acentuado poder económico na região, dedicando-se não só ás pescas como ainda à marinha mercante. Estimasse que nos meados do séc. XIX aquelas armações capturavam entre 15 a 20 mil tunídeos por ano, faltando-nos porém dados estatísticos absolutamente fidedignos. Sabe-se contudo que o recorde das capturas por redes de cerco pertence às armações do Barril e Medo das Cascas, que no ano de 1881 pescaram respectivamente 46.825 e 40.729 atuns, de direito e de revés.
Importa acrescentar que era o Algarve a única região do país onde se pescava o atum através das artes do cerco.
Apesar das vetustas tradições dessas artes e dos rendáveis proventos obtidos pelas várias armações que se lançavam na região, o certo é que no princípio do séc. XX diminuiu de forma significativa o número das armações de pesca lançadas na costa algarvia. Basta dizer que, passado o período das grandes encomendas suscitadas pela necessidade de abastecimento dos exércitos beligerantes na I Guerra Mundial, na zona do sotavento, que foi sempre a mais produtiva em capturas, restringiu-se ao lançamento anual de apenas seis armações, cujas concessões se distribuíam da seguinte forma: duas entre o Cabo de Santa Maria e Quarteira e as restantes quatro entre a barra da Fuzeta e Monte Gordo. O número de homens empregues na campanha anual dessas seis armações excedia as três centenas, cuja faina de captura se iniciava quando os tunídeos vindos do Atlântico se aproximavam do Mediterrâneo para desovarem. Era a chamada “pesca de direito” que decorria entre 1 de Maio e 30 de Junho, sendo após essa data desarmados os cercos que se lançavam entre o Cabo de Santa Maria e Quarteira. As restantes quatro armações permaneciam nos seus locais, dedicando-se entre 1 de Julho e 31 de Agosto à denominada “pesca de revés”, isto é, capturando os atuns que regressavam ao oceano após a desova.

No tempo em que a pesca do atum era abundante e não existiam ainda as fábricas de conservas, o administrador das armações ganhava por ano cerca de 180 mil réis. Era o único que tinha um salário fixo, porque todos os outros dependiam dos valores apurados no final da faina, pois que todo o cerco funcionava como uma espécie de sociedade. Quanto mais pescassem mais ganhavam. Já agora acrescente-se que o preço de um atum na segunda metade do séc. XIX oscilava entre 500 e 1000 réis, passando nos meados dos anos vinte do século seguinte para 500 a 800 escudos. Os lucros das empresas eram enormes, sobretudo após a República, embora os índices das capturas fossem muito inferiores aos da centúria oitocentista.
A primeira fábrica instituída no nosso país para a conservação do pescado foi a Casa Parodi, sediada em Vila Real de Santo António por volta de 1884. Nessa altura os atuns que chegavam à fábrica eram abertos, cortados aos pedaços e conservados em salmoura dentro de grandes pias subterrâneas, parecidas com as antigas cisternas algarvias. Os vapores que exalavam tinham de ser libertados pelos “respiradores” abertos nas paredes dessas caves, pois que a sua concentração era altamente perigosa para a saúde, não sendo raros os casos de trabalhadores incautos que aí pereceram ao inalar aqueles letais vapores. Os mercados para os quais se exportava, embalado em barricas de madeira, eram a Espanha e a Itália, ou seja, os mesmos que no tempo das conservas fizeram furor e encheram os bolsos dos grandes empresários estrangeiros aqui radicados.
No início da década de trinta do séc. XX a fábrica Parodi dispunha da mais moderna tecnologia para a transformação industrial de mil atuns por dia. As unidades de produção fabril pertenciam a empresários espanhóis, gregos, italianos e nacionais, que se espalhavam por Vila Real de Santo António, Tavira, Olhão, Lagoa e Portimão. Alguns desses empresários fabris constituíram famílias que se tornaram verdadeiros clãs da indústria pesqueira algarvia, de que ainda são exemplo os Feu, os Ramirez, etc.
As armações que se lançavam nas concessões sediadas nas costa de Faro, Tavira e Portimão, davam trabalho a mais de uma centena de homens e o sustento de muitas dezenas de famílias. A armação fervilhava de vida humana, em torno da qual se reunia uma espécie de sociedade pesqueira, sobrevivendo dos magros proventos da faina. Os níveis de pobreza eram flagrantes, mas tolerados por uma sociedade marcada pelas desigualdades sociais. A igreja, por sua vez, estando muito presente na vida quotidiana do pescador nada fazia para alterar a distribuição da riqueza pelos mais desfavorecidos. Ser pescador era sinónimo de pobreza, desnutrição, analfabetismo e exploração. A vida era encarada assim mesmo, sem queixume nem alternativa. Pobres e ricos coexistiam numa quotidiana urdidura de relações sociais e de dependências económicas tidas por normais, pacíficas e irreversíveis.
No topo do ordenamento profissional da armação do atum encontrava-se o mandador (espécie de chefe da sociedade), abaixo do qual se situavam dois preguiceiros, dois interinos e um escrivão. Por conseguinte, a armação enquanto empresa comportava apenas seis funcionários, desempenhando cargos de chefia e organização burocrática. O restante pessoal, mais de uma centena de homens, recebia um salário quase simbólico, já que o seu rendimento final dependia do apuramento global das capturas. Assim, estamos perante um cenário de soalisação de riqueza que se distribui desde o simples moço de fretes até ao barbeiro, ao boticário e ao médico, que são os profissionais mais qualificados e respeitados da armação. O princípio geral que está por detrás desta sociedade é simples: quanto mais pescarem mais ganham.

A selecção e matrícula dos pescadores da armação realiza-se em meados de Março e até ao final da primeira quinzena de Abril têm de estar prontas as redes, os ferros, as bóias, o copo, etc. Na costa onde se espraia o cerco forma-se o arraial, que é um pequeno aglomerado de casas de colmo para acomodar os pescadores durante o período de três a seis meses em que decorre a faina, no caso da armação ser lançado de direito e de revés. O mandador entretanto vai estudando o espaço da concessão, cabendo-lhe decidir se o cerco deve ser lançado mais para a terra ou mais para o mar, mais para este ou para oeste, conquanto não ultrapasse os limites acordados na distribuição das concessões da pesca. Na véspera do lançamento da armação procede-se à benção das redes e restantes apetrechos, pelo pároco ou até mesmo pelo prelado da diocese, conforme a importância económica e social do empresário a que a mesma pertence. O sacerdote asperge com o hissope a água benta sobre as redes estendidas na areia e sobre as centenas de pessoas que coabitam o arraial, abençoando as almas e as alfaias numa simbiose de vida, entre a dependência económica e a crença divina. Uma enorme festa desponta no arraial, com foguetes e folguedos, mas também com preces e promessas aos santos de maior devoção para que a faina decorra com sucesso. Do apuro da armação dependerá o pão dos seus filhos nos dias frios e tempestuosos do inverno. A invocação mais generalizada é de Nossa Senhora, embora também não se esqueça S. Telmo, S. Pedro e até St.º António, ouvindo-se o povo ajoelhado na praia junto às alfaias da pesca entoando em coro a Salvé Rainha com fervoroso sentimento da mais pura religiosidade.

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