sexta-feira, 30 de dezembro de 2011


ANGIE SANTANA & LÍLIA TAVARES

O MESTRE


O mestre ajeitou a tela no cavalete diante da excelência colossal que se impunha diante do seu olhar incrédulo. Tanta beleza testemunhada iria suceder e imortalizar-se em mais um quadro que, quando concluído, teria que se decidir por vender ou guardar entre o espólio já tão multiplicado.
Misturava algumas tintas para obter a tonalidade quente e erótica da imagem que já tinha perpetuado nas suas sensações. Sentia a brisa fresca primaveril que despontava com a paisagem.
Gostava de pintar ao relento. A inspiração adivinhava-se mais impetuosa, mais sublime!

O cheiro das tintas trazia-lhe à memória o quadro completo. Conjecturava sempre a sua forma e conteúdo por antecipação. É o sublinhar do artístico genuíno que ganha sempre arquitectura de um molde ainda embrutecido, por escavar.

Sim, era mais um encontro com a nudez preenchida e branca nas pontas dos seus dedos. Fechava os olhos para antecipar as cores, para mandar para longe todas as imagens, que, teimosas, eram a companhia destes momentos em que acariciava o novo e o vivido, o cálido e o agreste dos seus anseios. De olhos semi-cerrados tudo agora era claro.

Uma aragem mais fresca fê-lo aconchegar a capa ao seu corpo, trémulo de espanto, novidade e memórias que passou para o pincel escolhido. Tomou-o entre os dedos para afagar a crina seca antes de o mergulhar na tinta ainda impreparada. Tocou, embebeu o pincel e iniciou, com paixão uma forma ainda irregular e sem sentido. O rumor de um melro na folhagem fê-lo sorrir. Não estava só nesta relação amorosa com o seu objecto que estava nu, a querer cobrir-se de aromas e desejos.....
...de sensações vividas tão longe como se o universo fosse reduzido a uma lua cheiíssima de emoções ainda por explorar!

A aragem trouxe-lhe a impressão de um sopro com sabor a batom encarnado, de uns lábios delineados do amor que adoraria ter de novo junto de si. De olhos fechados imaginou a silhueta de um corpo que conhecia de cor. Desprendeu-se do pincel e as pontas dos dedos acariciaram a tela branca como ele tinha um dia alimentado os mesmos pelos contornos do aveludado da pele da mulher amada.
Começavam a sobressair os esboços do projecto fantasiado. Um sonho de mulher, o ser mais belo de um mundo que lhe pertencia, iria eternizar-se na tela da cor do cal.
Desejaria poder perpetuar cada traço, cada marca que se lhe correspondia. A sua musa, um dia a jóia querida que deixou escapar entre as unhas ávidas de outras poesias! Nunca mais encontrou inspiração que lhe igualasse...

Olhou a tela, exausto, como se de si tivesse saído toda aquela energia e beleza, arrancadas do seu coração que tomava, enfraquecido, consciência do latente, sob os traços, leves aqui, marcados e mais vívidos e apaixonados ali. Tudo observou e sorriu. Esboçou um sorriso de incompletude, de entrega, de submissão.
“Esta tela nunca… vai poder ser exposta nem vendida”, disse num sussurro só para si. Tocou as manchas de cor mais expressivas, ardentes, íntimas e arredondadas. “Eleanora, Eleanora,…” e cruzou os braços, matizados dos tons e aromas da mulher…

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